A alma do cachaceiro
I
Tomei um porre danado
E fui dormir meio alto
Acordei de madrugada
Sentindo um sobressalto
Fiquei morrendo de medo
Pensando que era um assalto
II
Depois de acostumar
Os olhos na escuridão
Levantei-me devagar
Com certa hesitação
Pois tinha quase certeza
Que ali tinha um ladrão
III
Depois de alguns instantes
Eu consegui ver um vulto
Devido à escuridão
Ele tava meio oculto
Mas pelo tamanho dele
Pude ver que era adulto
IV
Gelado como eu estava
Eu fiquei ali parado
Quando pensei em gritar
A língua tinha travado
Quando eu pisquei os olhos
O vulto tava ao meu lado
V
Meu corpo tremia todo
Tava todo arrepiado
O mijo descia quente
Senti o pé encharcado
Mas para minha surpresa
O vulto não tava armado
VI
O vulto de contemplou
E pediu para eu ter calma
Disse que quando era vivo
O seu nome era Djalma
Mas como tinha morrido
Ali tava a sua alma
VII
Disse que tava penando
Pois morreu embriagado
E a pinga que bebeu
Tinha ficado fiado
E o morto não sossega
Quando morre endividado
VIII
Senti a merda descendo
Queimando feito uma chama
Me urinei outra vez
Encharcando o meu pijama
Acho que não desmaiei
Porque me sentei na cama
IX
O vulto falou de novo
E pediu pra me acalmar
Pois estava precisando
De alguém pra lhe ajudar
Devendo ir ao boteco
A sua conta pagar
X
Eu que nunca acreditei
Em alma e assombração
Pensei que tava sonhando
E me dei um beliscão
Ao me perceber desperto
Senti enorme aflição
XI
Gaguejando perguntei
Por que ele me escolheu
Não o conhecia vivo
E nem sei quando morreu
Também não fui avalista
Da cachaça que bebeu
XII
Ele disse que o bar
Onde deixou o fiado
Era o mesmo que eu bebia
E já bebeu ao meu lado
Já pagou cana pra mim
Mas eu não tava lembrado
XIII
Ele disse que eu devia
Retribuir o favor
Até porque o fiado
Não era grande valor
E pagar a sua conta
Seria um ato de amor
XIV
Eu disse que seu pedido
Era muito comovente
Se eu pudesse pagaria
Ficaria até contente
Mas como estava liso
Procurasse algum parente
XV
Ele voltou a falar
Com uma voz constrangida
Que não podia mudar
A pessoa escolhida
Que o encargo era meu
Enquanto eu tivesse vida
XVI
A essa altura dos fatos
Já quase amanhecia
Eu procurei ganhar tempo
Pra ver se a alma sumia
Pois dizem que assombração
Não aparece de dia
XVII
Quando o dia amanheceu
O vulto então de desfez
Mas quando a noite caiu
Ele voltou outra vez
E assim nessa agonia
Eu passei mais de um mês
XVIII
Toda noite ele voltava
De manhã cedo sumia
Ficava me perturbando
E assim eu não dormia
Não tava mais aguentando
Viver naquela agonia
XIX
Fiquei mudando de quarto
Para tentar despistar
Mas de nada adiantou
Não consegui me livrar
Porque a alma penada
Conseguia me encontrar
XX
Para não enlouquecer
Eu deixei de teimosia
Mas para pagar a conta
Pedi uma garantia
Que ele me deixasse em paz
A partir daquele dia
XXI
Ele disse que eu pagasse
Que ele assim procederia
Se acaso eu farrapasse
Ele sempre voltaria
Não de daria sossego
Nem se eu dormisse de dia
XXII
Pra me livrar desse carma
Não vi outra solução
E então paguei a conta
Parcelada no cartão
E me livrei de uma vez
Daquela assombração