A morte de João Malungo
João, um malungo extraviado, encontrando-se acabrunhado um dia, desavisadamente morreu.
Não se dando conta do passamento, sem esperar o certo momento, à Terra de novo desceu.
Espantou-se com o que via, teve missa de sétimo dia, coisa que nem queria, a que toda gente compareceu.
Os poucos amigos que fez, na vida sisuda levada, festejaram a partida do João, cumprindo um desejo seu.
Andando de lá prá cá, inconsciente da forma que estava, João Malungo se atrapalhava, tentando com os vivos se comunicar.
Ninguém lhe prestava atenção, nem mesmo a bruaca de outrora, vestindo luto fechado agora, saudades do Malungo a chorar
Achando tudo aquilo esquisito, João Malungo sentiu-se aflito: sequer escutava gritos, uma constante no antigo lar.
Não sentia mais dores no corpo, levitava sem aporrinhação, Jacó da loja ao lhe ver não lhe cobrou prestação, fato prá comemorar.
Em vida o João nada fez, além de meter os pés pelas mãos, dizem que não foi bom marido, também não foi bom cristão, flertava com a alta heresia.
Gostava de um bom bate-papo fiado, de expor seu pensar insensato, trafegando sempre na contramão, inda cismava namorar a poesia.
No velório uma moça chorou, seu rosto molhado, ninguém guardou, em silêncio ela saiu, do mesmo jeito que entrou – era seu nome Maria.
Dos filhos, o João apreço não tinha; dos netos abnegação, dos parentes há muito afastado, João era perda que pouco se sentia.
Voltando ao estado do João, malungo em espírito zanzando, botando reparo em tudo, morto pensando estar vivo, a todos importunando.
Não sentia fome nem sede, roupa sem ter de trocar, o que o João mais estranhava era ficar sem falar, mas já ia se acostumando.
Até pros mortos sem corpo o tempo também vai passando, e aos poucos o João Malungo, de modo inconsciente, mudanças em si foi notando,
As já citadas acima outras foi acrescentando: “Gente, como é bom estar morto! Por que demorou tanto?”, ficava o defunto pensando.
Mas nesse período, entretanto, algo de grave ocorreu: foi notado o sumiço do João. “Aonde está João Malungo?” Foi a grande interrogação.
No céu foi grande alvoroço, pois o João lá as caras não deu. São Pedro jurou de pés juntos “Aqui teve Manoel, teve também Serafim. Mas não veio nenhum João”
Correram ao purgatório prá ver se o João por lá se encontrava; deram com a cara na porta – era ponto facultativo, dia de São Damião.
Antes de procurar no mundo, faltava olhar no Inferno, lá nos domínios do Cão. “Aqui chegou Zé Sarney, depois veio Esperidão; mas posso lhes garantir: não vi a cara do João”.
Saíram de rabo entre as pernas, sem poder dar conta do João, uma falha grosseira, terrível, passível de punição. Ficava a pergunta no ar: aonde estará o João?
Não havendo mais nada a fazer, foram a presença de Deus em busca de autorização: formar um exército de anjos e ir atrás do João.
São Pedro ficou revoltado, girando as chaves nas mãos: “Eita malungo aloprado, emérito criador de casos, fabricante de confusão”.
“Se aparecer por aqui, bato-lhe a porta nas fuças, prego-lhe um rotundo Não. Voltar prá Terra mais cedo? Está fora de cogitação”.
Santa Luzia, mais doce, resolve argumentar, pleiteia em favor do malungo uma chance prá retornar: fazê-lo dormir outra vez, e vivo de novo acordar.
A comissão reunida, percebe da santa a intenção: passar uma borracha no erro, fazer retornar o João, mas é preciso encontrá-lo , botá-lo de novo a sonhar.
Por maioria de votos é dada a questão encerrada; Deus autoriza a missão e começa do João a caçada. Os anjos saem em magotes querendo o malungo logo pegar.
Por foros desconhecidos, vazou prá Satã a notícia: os anjos à caça do João. Os pés cavoucando o chão, diz o Cão - “mas que grande injustiça! Nem bem morre já quer voltar”.
O qüiproquó foi formado, João Malungo sendo caçado por tudo que é lado do mundo, Maria a chorar sua ausência, em noites insones, sozinha.
João a tomar consciência de condição tão singela, olhava a Maria dormindo: pensava de si prá consigo “que bom seria estar ao teu lado, minha bela, daqui eu velo por ti. Nada tema”.
Logo veio a informação: um anjo estafeta apressado, informou ao chefe do exército o local do malungo amoitado. Criou-se um novo dilema: levar João Malungo pro céu traria grandes problemas.
Reuniram-se os anjos em congresso a firmar uma resolução: Se Pedro o João não queria, o Inferno seria demais; com o purgatório fechado outra solução se convinha.
Depois de muita conversa, de vai prá lá vem prá cá, Satã já se preparando prá no Inferno o João alojar, um anjo solta a proposta: “Vamos o tempo apagar”.
“Fazemos o João se esquecer do passamento ocorrido, Pedro não passa mais raiva, Satã fica doido varrido, limpamos a memória do povo, da morte de João Malungo ninguém vai mais se lembrar”.
O anjo general do exército achou a proposta correta, mandou telegrama prá Deus, recebendo logo resposta, imediata e direta: terminem esse caso enrolado, deixem o João sossegado – voltem prá casa já, já!
Os anjos providenciaram toda mutreta na hora: botaram o povo a dormir, o tempo a andar para trás; foi triste ver o desânimo que dominou Satanás, ao ver João Malungo da grande encrenca escapar.
Não se fala mais dessa morte, ninguém nem mesmo a sonhou, hoje João Malungo e Maria vivem seu sonho de amor, as lágrimas que foram choradas, a água dos tempos levou.
Ficou somente o registro nas atas celestiais: João Malungo passou pelo céu, voltou de novo aos mortais, gerou tamanho furdunço – o peste a morte enrolou.
Nem ele mesmo se lembra de toda bagunça que armou, da birra que Pedro teve, da zanga que o Cão ficou, dos tempos de alma penada, nem dos lugares que andou.
Hoje o malungo anda quieto, teve uma nova ninhada, Maria segura firme a canga ali colocada, a criançada arrelia, João Malungo fazendo poesia na vida que sempre sonhou.
A morte de João malungo anunciada a revel, deu muito trabalho pro Cão, também deu trabalho no céu, foi como se fosse num sonho, o tal passamento medonho que aqui relatei em cordel.
Vale do Paraíba, tarde da primeira Segunda-Feira de Dezembro de 2009
João Bosco (Aprendiz de poeta)