MORTO-VIVO DO CONCRETO, A GENTE NÃO DEVE SER
Nº 31 - A MORTE VIVE NO CONCRETO
Cinco horas da manhã
Levanto e vou no terraço
Cumprimento a alvorada
Como todo dia faço
Ainda vejo na rua
Um resto da luz da lua
Iluminando o espaço
Sinto faltar um pedaço
De dentro do coração
Vendo o perfil impreciso
Que há em cada mansão
Que se posta imponente
Tudo é muito diferente
Das coisas do meu sertão
São rabiscos de ilusão
Nas formas mais variadas
Figuras que se agridem
Na confusão das fachadas
Manchadas de negro véu
Como a torre de Babel
Confundindo a madrugada
Esse tudo ou quase nada
Tem um quê de desengano
É a construção da vida
Num cenário desumano
Sem desfrutar da beleza
Ausente na natureza
Da cegueira do insano
Muro alto, ledo engano
A solidão dos quintais
Um presídio disfarçando
Outras formas de currais
Qual trincheira escondida
Casamata protegida
Reduto de animais
Um arremedo de paz
Por trás da cerca do muro
Escudo da insensatez
Um falso porto seguro
Numa cabeça doente
Desolação no presente
Condenação do futuro
No calabouço escuro
Que permeia cada mente
O medo se faz imagem
Da voz do inconsciente
Fustigando a liberdade
Destrói a felicidade
Que há no peito da gente
O céu assiste impotente
A tanta degradação
Do seu povo indiferente
Que caminha sem razão
Nos corredores da vida
Com sua alma perdida
Sem rumo e sem direção
Decreta fim da emoção
Morte à sensibilidade
Cegueira na luz da vida
Solidão sem amizade
Por detrás dos paredões
Seres que fecham portões
Vivem fora da verdade
A sombra da claridade
Contornando a silhueta
Do prédio, só um arquivo
De quem habita o planeta
Pobre ser, vira objeto
Da armação de concreto
Que lhe serve de gaveta
São os lares de proveta
Modelos de sobrevida
Seios dos filhos do tempo
Tempo das coisas perdidas
Que passa pela janela
Qual vento frio que gela
A alma morta da vida
No sorriso ou no gemido
Há o mesmo sentimento
Tanto faz que o tempo passe
Sob o céu claro ou cinzento
Nessa prisão nada importa
O mundo detrás da porta
Não precisa ter alento
No cárcere do apartamento
Um cadeado na porta
Uma grade na janela
Um filho que se comporta
Em frente à televisão
Vivendo a emoção
Da vida depois de morta
Na segurança que exorta
Suposta tranqüilidade
Contam os dias seguidos
Só pra marcar a idade
Dessa passagem discreta
Pelo tempo que vegeta
Vivendo pela metade
Um ventre de nulidade
Do repouso do demente
Refém do medo que mira
No espelho confidente
O reflexo da imagem
Do projeto de miragem
De um fruto sem semente
O sol brilha incandescente
Mas não há jardim nem flores
Seus raios morrem nas lajes
Dessa casa dos horrores
A natureza protesta
Pela imagem funesta
Do arco-íris sem cores
Sepultados os valores
Resta sentir amargura
E o olhar do semelhante
Desprovido de ternura
É a destruição total
Do convívio social
Esse mal que não tem cura
O homem na sepultura
Feito morto ambulante
Não repara que a vida
Acontece a todo instante
Na fuga, a humanidade
Fica da felicidade
Cada dia mais distante
PUBLICAÇÃO PARCIAL DO CORDEL