MOTE
Viagem
 
«NÃO EVOLUO, VIAJO»,
É FADO QUE DEUS ME DEU
DISSE PESSOA. EU AJO.
QUEM O DECIDE? SOU EU.



Todos temos um destino.
Desde o dia em que nascemos
‘té ao dia que morremos
ouvimos a voz de um sino:
‑ Menino, tens de ter tino.
Se queres usar um bom trajo
e não andar c’um andrajo,
evolui, apanha tudo...
Mas então, fico sisudo...
Não evoluo. Viajo
 
«Viajar, perder países...»
Em vez de ganhar dinheiro
é ganhar o Mundo inteiro,
é conquistar as raízes
sem ter donos nem juízes...
E eu que não sou sandeu
corro o mundo qual judeu...
Busco a Terra Prometida
que me dê sentido à vida...
É fado que Deus me deu.
 
Toda a pessoa sisuda
deve sempre evoluir
para tudo possuir...
Precisa sempre de ajuda
e se não concorda, muda...
Mas eu, a isso, reajo:
“Não evoluo, viajo”...
Se o poeta é fingidor
e chega a fingir a Dor...,
disse Pessoa, eu ajo.
 
Agir, enfrentar a vida
reagir aos desafios
apanhar todos os fios
com que a vida nos convida
e sempre nos desafia...
é dizer: o fado é meu.
E como fiel ateu
tomo as rédeas do destino
e num gesto repentino
Quem o decide? Sou eu.
 
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
 
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
 
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu
Fernando Pessoa
20-9-1933
"Cancioneiro"