MISTÉRIO NA PITINGA
Vou começar este texto contando uma história de arrepiar. Tudo começou lá pelas terras do sem fim, bandas de Ilhéus e Itabuna, quando se intensificavam as derrubadas das matas nativas para implantação das roças de cacau, quando homens de todo norte e nordeste do Brasil faziam corrida rumo ao trabalho e a ilusão de enriquecimento com o novo ouro da região, a fruta que faz o chocolate e que era exportada para as grandes cidades brasileiras e para a Europa, enriquecendo os coronéis, grandes proprietários de terras, e escravizando os trabalhadores que faziam mais de 12 horas diárias de esforços imensuráveis em troca de baixos salários e condições precárias de moradia e alimentação. Mesmo assim levas de gente sem nada viajavam pelo sertão, pegavam navios em terceira classe e se empilhavam até o porto de São Jorge de Ilhéus, em busca de sonhos de enriquecimento. Muitos deles eram contratados dentro dos próprios navios pelos coronéis que viajavam em primeira classe depois de retornarem de seus negócios e suas orgias na capital da Bahia de todos os santos. Entre eles encontrava-se Juvenal, homem forte, de barba negra, com seus trinta e poucos anos, fugido da seca do Ceará, acompanhado por sua mulher Nara Margarida, com um filho recém-nascido nos braços longos e finos. Buscavam trabalho na terra e a promessa de um futuro melhor havia sido dada por um capataz de estância numa das praças de Salvador, logo que desembarcaram de um pau de arara depois de longa viagem pelas estradas íngremes do sertão nordestino. Deixaram pra trás uma casa caindo aos pedaços, vacas mortas de fome, um poço vazio, móveis velhos e uma roça de milho queimada pela seca interminável. Não havia condições de sobreviver naquele lugar próximo de uma pequena cidade quase fantasma, com moradores idosos que viviam de aposentadorias que gastavam comprando alimentos na única casa de comércio que vendia até remédios. Os mais jovens, sem perspectivas, rumavam para os grandes centros urbanos em busca de qualquer trabalho e engrossavam as vilas que surgiam nos subúrbios das capitais.
Juvenal não teve a sorte de ser contratado durante a viagem, e logo que desembarcaram no cais do porto de Ilhéus, foram até uma praça que era uma espécie de agência de empregos ao ar livre, onde homens e mulheres disponíveis para o trabalho, ficavam expostos ao sol e chuva, como uma leva de escravos, esperando por um patrão. Os vendedores ambulantes comercializavam pães recheados com mortadela, rapaduras, cachaça, frutas e doces por preços módicos e acessíveis para aqueles miseráveis famintos que chegavam todos os dias. Juvenal ainda possuía algum dinheiro que recebera pela venda de sua pequena fração de terra herdada dos pais que morreram por falta de médico e remédios no sertão. Teve sorte em encontrar alguém que se interessara por sua propriedade naquele fim de mundo. Não foi muito dinheiro, mas deu para pagar a viagem e ainda restavam uns trocos para alimentar a si, a mulher e o filho que mamava no seio grande de Nara.
Caiu a noite e nenhum dos contratadores de trabalhadores se interessou por Juvenal, talvez porque estava acompanhado por mulher e criança, e isso exigia mais despesas para o patrão. Tiveram que dormir embaixo de um abrigo de pescadores, agradecendo a Deus pela sorte de não haver chovido e nem ventado naquela noite estrelada e calorenta. Nara pegou no sono, com o filho nos braços, amassado nos peitos, sentada. Juvenal vigiava ao redor, sentado no chão, abraçado aos joelhos, tomando cuidado com os homens que passavam próximos, uns em algazarras e bêbados. Mesmo assim o sono o pegou e só abriu os olhos com a luz do sol nascendo dentro do mar imenso que se estendia no horizonte da Bahia.
Comprou dois sanduiches de mortadela e uma pequena garrafa de café com leite vendi-do por uma negra velha. Este foi o dejejum da família naquela manhã que começava quente. Quando o sol estava a pino, um caminhão estacionou na praça. Um velho de barba branca e botas de couro até os joelhos, batendo com um rebenque na perna o tempo todo, desceu e foi cercado por desempregados ávidos por serviço. Juvenal se aproximou. O velho olhava com atenção os desempregados e botou os olhos em Juvenal. Mirou suas mãos grandes, seus braços fortes, seu rosto jovem escondido pela barba preta, e o chamou. Perguntou de onde vinha e o que sabia fazer. Juvenal contou que estava chegando do interior do Ceará, que trabalhara em uma roça de milho, que foi corrido pela seca, e que estava com a mulher e um bebê de colo. Mesmo assim o velho mandou Juvenal pegar suas trouxas e sua família e embarcar na carroceria do caminhão. Juvenal foi até a mulher, pegou a única mala de couro que possuía e embarcaram. Ao lado deles viajaram outros tantos homens jovens até um povoado, uma espécie de vila agrária onde os fazendeiros instalavam seus trabalhadores. Numa casa ficaram seis homens; em outra sete, empilhados em poucos quartos, cada um com várias camas de colchões velhos. Na menor casa, com apenas um quarto que possuía uma cama de casal e uma de solteiro ao lado, uma cozinha com fogão à lenha, um armário, uma mesa e três bancos, foram instalados Juvenal, Nara e o pequeno Matias. “Aqui vai ser o rancho de vocês”, disse o velho, “depois falamos do acerto”. E prosseguiu: “Nada é de graça por aqui, vais ter que pagar com trabalho o teu aluguel e as despesas de comida. Mas trabalho é o que não vai te faltar. Temos muitas roças ao redor e precisamos de homens fortes e dispostos. Se não comerem demais, vai até sobrar algum dinheiro. Guarda tuas coisas e sobe por esta estrada até aquela casa grande que vamos te dar as primeiras instruções”, concluiu o velho de barba branca.
Desde então Juvenal começou a acordar às cinco horas da manhã e partia para a casa grande, onde tomavam uma caneca de café com leite, comiam um sanduiche de mortadela e empilhados na carroceria de um caminhão viajavam até as roças. Eram muitas e o trabalho era pesado, pra homem forte e jovem, de preferência. Os mais velhos, passados dos 50 anos, nem eram contratados, pois desmaiavam na lida diária e cansativa de derrubar mato e plantar pés de cacau. Ao meio-dia cada um parava numa sombra e abria sua marmita feita na noite anterior, com a comida fria e de poucos nutrientes para não ficar com muita dívida na bodega da fazenda. Juvenal tinha sorte, diziam os demais, tinha cozinheira e comia melhor. Os outros tinham que cozinhar em grupos, em suas casas repletas de machos, se revezando nas panelas. Depois da comida seguiam pela mata e lavouras. O dono das terras não cultivava apenas cacau, estava implantando também outras produções para diversificar. Os tempos estavam mudando e não dava para depender apenas de uma cultura, dizia. E lá pelas 18 horas, quando começava a escurecer, o caminhão retornava com os trabalhadores exaustos e famintos. Estes corriam para um banheiro coletivo e se banhavam antes de se enfiarem em suas casas para prepararem as comidas para a noite e para o outro dia. Juvenal possuía um pequeno banheiro anexo em sua casa, e por isso pagava um pouco mais de aluguel do que os demais. Não tinha o que reclamar, dizia para a mulher. E quando a criança dormia, Juvenal e Nara se abraçavam na cama e faziam amor até o orgasmo. Só então se sentiam relaxados e dormiam. Na manhã seguinte começava tudo novamente: Juvenal e os homens iam para as lavouras e Nara começava a lavar as roupas da família. Para aumentar os ganhos da casa, Juvenal permitiu que a mulher lavasse as roupas dos demais trabalhadores da fazenda. Quando juntou algum dinheiro, a primeira coisa que fez foi comprar um rádio, um aparelho moderno para escutar música e ouvir as novelas. O patrão levou as economias dela e comprou na cidade o aparelho que gerou muita alegria na casa. À noite até Juvenal gostava de ouvir as notícias do Brasil e do mundo, as novelas e músicas. Quando ele bebia uma cachaça, nos sábados, dançavam forrós e boleros até tarde, antes de caírem no sexo. Afinal domingo era sagrado e não pegavam no trabalho. Somente durante as colheitas não tinha folga nunca, era trabalho de segunda à segunda. Por isso recebiam um extra que acabava ficando nas dívidas com comida.
Quando chegava a semana de lua cheia, Juvenal ficava excitado demais. Inquieto, impaciente, não conseguia dormir, se revirava na cama, e lá pela meia-noite levantava e saía a caminhar pela madrugada. Nara ficava assustada, mas não comentava nada com ninguém e nem questionava o marido, ele sempre agira assim, desde os tempos em que viviam no sertão do Ceará. Nestas noites ela também não conseguia dormir direito, ficava horas acordada, rezando para todos os santos, a Virgem Maria e o Senhor Jesus Cristo, para que nada acontecesse ao esposo e para que ele voltasse o mais breve possível. Lá pelas três horas da madrugada Juvenal retornava à casa, exausto. Ia trabalhar cedo e produzia menos, passava a semana toda mais cansado do que as demais. Bocejava na lavoura, mas disfarçava.
Por várias vezes, exatamente nas semanas de lua cheia, aparecera bicho morto ao redor da fazenda, nas matas próximas. Um terneiro, uma vaca, galinhas, até mesmo cachorro. Quando descobriam, atribuíam estas mortes à ação de alguma onça. Como isto acontecia todos os meses, o patrão começou a se preocupar com os prejuízos causados. Tinha que conter esta situação. Mesmo que aproveitasse a carne das reses mortas para fazer carne de sol para vender aos peões, isto era muito estranho. Resolveu montar uma equipe para caçar a onça assassina. E como sempre acontecia nas noites de lua cheia, preparou seus homens com armas e munições para uma caçada. Espalhar-se-iam em grupos pelas matas e vigiariam. Juvenal foi convocado para participar de um dos grupos. Não vacilou. Recebeu uma espingarda com os projéteis que colocou nos bolsos e partiu para um setor da propriedade com mais três trabalhadores. No meio do caminho disse que deviam se separar silenciosamente para não espantar o bicho. Cada um foi para um lado.
Juvenal sumiu na mata com sua arma, olhou para a lua cheia, não conseguiu conter o uivo, sentiu mais uma vez na vida os pelos crescendo sobre a pele bronzeada, os olhos envermelhando como poças de sangue, os dentes caninos e as unhas crescendo, um mistério da natureza agindo sobre seu corpo mesmo contra sua vontade, e deitou na relva. Fechou os olhos, não olhou para a lua que clareava a noite. Tentava suportar e superar aquela vontade de beber sangue, esforçava-se para isso, mas não resistia. Avistou um bando de macacos que dormiam nos galhos de uma árvore. Apontou a arma para eles e atirou. O estampido ecoou pela mata, alertando os demais homens. Um macaco caiu no chão e Juvenal o pegou sangrando. Mordeu seu pescoço, chupou avidamente seu sangue quente por uns minutos, ouviu a correria dos macacos fugindo, pulando de galho em galho, e os passos dos homens correndo em sua direção. Saciado, atirou o pequeno corpo do sagui no meio da floresta e também correu levando a arma. Escondeu-se entre uns galhos e viu passarem seus companheiros de caçada em alarmada corrida. Aos poucos sentiu seu corpo relaxando, os dentes voltando ao normal, os pelos dos braços e pernas diminuindo, como um milagre, voltava ao normal. As poças de sangue dos olhos iam sumindo enquanto Juvenal voltava a caminhar na mata. Pegou sua garrafa de água da cintura e lavou a boca, o rosto, as mãos e a barba. Quando se sentia melhor, Juvenal enxergou seus companheiros chegando assustados. Perguntaram o que se sucedera, ao qual Juvenal respondeu que havia atirado em direção a uma onça pintada, de porte médio, que viu na mata, mas que ela escapara, que ele era de má pontaria, e que ela fugira. “Então espantamos o bicho, vamos voltar que amanhã temos trabalho cedo”, disse o patrão. E seguiram pela mata, reunindo os grupos, até chegarem à casa grande onde deixaram suas armas e foram dormir em seus alojamentos.
Aquela transformação só acontecia em uma das noites de lua cheia com Juvenal. Desde criança convivia com este mal secreto. Nem os pais, nem a esposa, ninguém sabia deste mal. Quando ele se manifestava, era só beber um pouco de sangue quente, de qualquer animal, que em poucos minutos a transformação acabava. Ele não tinha como pesquisar sobre este mal, pois não sabia ler. Era mais um dos milhões de analfabetos do país naqueles tempos. Mesmo assim a sua curiosidade aumentava e ele ouvia da boca dos outros as histórias de lobisomem que contavam nas rodas de conversas. No entanto ele nunca havia atacado pessoas durante suas transformações. Isso sabia. Mas temia que um dia isso acontecesse, por isso, quando sentia que iria se transformar, fugia de perto da esposa, do filho e dos demais. Podia não ter controle. Quando era menino e adolescente, nas noites de lua cheia, no Ceará, fugia de perto dos pais e caminhava pelo sertão em busca de um sangue quente, desvairado. Chupou muita vaca, terneiro, cachorro, macaco, as galinhas eram as presas mais fáceis, mas fazia muito barulho, era perigoso, uma vez até levou uns tiros de raspão dentro de um galinheiro, sabia que corria risco de morrer, mas a transformação era incontrolável, quando vinha só tinha uma maneira de voltar ao normal: era beber sangue quente de bicho. Só isso ele sabia e passara toda sua vida com esta sina que não sabia se era do diabo, mas que não era de Deus ele tinha certeza. Todos os meses tinha que enfrentar este horror. Lamentava.
Passaram-se os meses, um ano, o primeiro aniversário do pequeno Matias, a festa da colheita com quermesse, missa e baile, o primeiro ano que o casal estava na fazenda do Sinhô Borges, mas o drama de Juvenal com sua transformação persistia. Não tinha como haver uma cura para este mal diabólico? se perguntava Juvenal nos seus momentos de silêncio e reflexão quando aproximava-se as noites de lua cheia. Estava ele condenado até a morte por esta coisa maligna? Será que o filho seria um monstrinho também a sofrer com este mal? Estas eram as questões da vida de Juvenal naquelas noites horrorosas.
Para evitar prejuízos ao patrão, quando chegava o tempo de lua cheia e a noite da transformação, Juvenal começou a ir longe para sugar o sangue fresco e quente de alguma presa. Caminhava léguas, atravessava cercas de outras propriedades, enquanto a mulher ficava aflita em casa, abraçada no menino, esperando ele voltar exausto daquelas caminhadas mensais e misteriosas em que ele nada a revelava. Corria riscos, mas era sua sina, um dia teria de acabar, quem sabe somente com sua morte, pensava enquanto varava terras, chupava um sangue e depois retornava.
Numa destas noites de desespero, transformado em lobisomem, Juvenal entrou em um campo atrás de algum bicho qualquer. Uns bezerros dormiam embaixo de um matinho quando Juvenal os atacou. Agarrou um bezerro menor pelo pescoço e cravou seus dentes de monstro no bicho. Os outros fugiram, mugindo, e despertaram o fazendeiro dono daquelas terras que pegou a espingarda e saiu para fora da casa. Deu um tiro para cima e chamou seus peões que acordaram e foram ao encontro do patrão. “Peguem as armas, moços, que hoje vamos pôr as mãos naquela onça desgraçada que deve ter matado mais um bezerro aqui na fazenda.” Correram em direção de onde fugiam os demais bezerros e enxergaram, em vez de onça, um homem de braços peludos, olhos vermelhos e dentes pontiagudos com a boca suja de sangue. O bezerro ainda sangrava e se debatia quando Juvenal, sentindo a proximidade dos homens que chegavam gritando, começou a correr. “É lobisomem, ele existe, é verdade, vamos pegar pra mostrar!” gritavam os homens que corriam. Juvenal corria desesperadamente e aos poucos a transformação se desfazia, como sempre após ele beber o sangue quente da presa. Pisou em um buraco e caiu. Viu-se cercado por cinco homens armados que gritavam: “Pegamos, pegamos o lobisomem!” O chefe da fazenda disse: “Não matem o desgraçado, vamos ver quem é e entregar para as autoridades.” Carregaram Juvenal para a fazenda quando o patrão o reconheceu: “Mas é Juvenal, o peão do Sinhô Borges. Amarrem ele. Vá chamar o Sinhô Borges e vigiem o homem-bicho enquanto vou ver a situação do bezerro atacado. Um dos homens montou em seu cavalo e rumou para a fazenda vizinha fazendo alarde de que pegaram o lobisomem, o patrão foi ver o bezerro e quatro homens amarraram Juvenal que estava exausto mas alerta. “Então é tu que chupa cabra, mata vaca e até galinha, endiabrado!” dizia um dos peões. O outro apontava a arma para ele e dizia: “Chegou tua hora de te encontrar com o diabo, teu rei, desgraçado. E já foram chamar teu patrão que vai te colocar na forca, filho da puta!”
Juvenal sentiu dentro dele uma força desconhecida provocada pelo medo e o terror, ar-rebentou as cordas que o amarravam, empurrou o homem que estava mais perto dele, e começou a correr em direção a uns matos. Os homens o perseguiram e atiraram nas suas costas. Uma bala passou de raspão e acertou seu braço esquerdo, outra pegou na sua perna direita, mas ele não sentia nada, seguiu correndo, correndo, entrou na mata e sumiu da vista de seus perseguidores que voltaram, montaram em cavalos e empreenderam buscas pelos arredores. Sinhô Borges mandou parte de seus homens cercarem a casa onde Juvenal morava com a esposa que ficou atônita com aquele movimento enquanto o filho chorava sem parar. Dezenas de homens reuniram-se e foram armados em busca do lobisomem que agora eles sabiam que era Juvenal, o peão distinto, pai de família e bom trabalhador. “Imagina se ele morde alguma pessoa, pois esta pessoa mordida também vira lobisomem, é melhor matar este demônio antes que se criem outros por estas bandas”, diziam os homens enquanto troteavam em seus cavalos em busca de Juvenal.
Aquela noite foi a última de Juvenal naquelas bandas. Mesmo baleado, seguiu correndo sob a lua cheia que clareava os campos desmatados, prontos para a agricultura. Com uma energia descomunal atravessou matas, varou rios e mesmo baleado foi avante, cruzando povoados e cidades, passando por matas e praias, fugindo da morte. Nunca mais foi visto naquelas terras. Sua esposa ficou refém na fazenda do Sinhô Borges. Não tinha pra onde ir. Seu filho cresceu e graças a Deus, dizia a mãe, não herdou o mal do pai. Ela virou a cozinheira da casa grande e anos depois, quando deram Juvenal por morto e ela por viúva, casou-se com um trabalhador das bandas de Itabuna que prestava seus serviços na fazenda e assumiu a pequena casa que fora de Juvenal.
No entanto, Juvenal Lustroso, salvo das balas, atravessou a nado o Rio Buranhéin numa noite de maré baixa, caminhou pela areia até as falésias da Praia da Pitinga e montou um casebre com troncos de árvores da mata Atlântica nas proximidades da Lagoa Azul onde passou o restante de sua vida, enfrentando seu mal das noites de lua cheia. Nos demais dias catava frutas, pescava, caçava e sobrevivia com o que a natureza lhe dava. Barbudo e mancando de uma perna, às vezes fazia incursões pelo povoado do Arraial d’Ajuda, onde ganhava roupas velhas, panelas, talheres, alimentos e outros objetos que levava em sacos para usar em sua cabana no meio da mata. Mesmo na velhice, quando se transformava em lobisomem, corria, manco, atrás de uma presa para sugar seu sangue quente e cumprir sua eterna sina. Quando chegava a lua cheia os macacos ficavam em polvorosa, os bichos da mata não ousavam sair de suas tocas, pois um deles seria vítima fatal do lobisomem da Pitinga.
Passaram-se os anos, as décadas, chegou a indústria do turismo, a modernidade, o povoado se transformou em vila e distrito, chegaram os novos moradores provenientes de São Paulo, Minas Gerais e outras bandas, construíram mansões, pousadas e loteamentos, mas a cabana do velho Juvenal Lustroso continua lá, cravada no meio da mata, com seus badulaques juntados e pendurados nas árvores próximas.
Quem passa pela praia da Pitinga, nas caminhadas turísticas de lua cheia entre Trancoso e Arraial d’Ajuda, ou quem nestas noites se aventura a visitar a praia Taípe e tomar um banho no Rio da Barra, pode ouvir o uivo do velho Juvenal nos seus momentos de transformação, pagando sua sina desde menino, homem-bicho que deixou para trás, por destino, toda uma vida normal para viver embretado nestas matas tropicais do sul da Bahia de todos os santos e de todos os demônios.