Depois do Natal: um conto para não ser lido à noite (cap XX- PROCURANDO A FILHA)
Alheio a todos esses acontecimentos, que estavam abalando o centro da cidade, o casal de turistas, desesperado, procurava pela filha.
Não tendo encontrado nada na casa, saíram para o pátio dos fundos. Também ali tudo bem arrumado. Tudo bem limpo e cuidado: roseiras e outras flores enfeitavam tudo, por ali, em canteiros grandes na fora de dois losangos contornados por pedras irregulares, mas bem alinhadas.
Um primor de organização.
-Vamos olhar naquele barracão - a mulher arrasta o marido na direção da oficina do sapateiro, que por ser um profissional conhecido, não tinha uma sapataria com a porta para a rua, como era de se esperar, mas uma oficina nos fundos do quintal, isolada da casa.
Os governistas diziam que a oficina nos fundos era para não pagar impostos.
“Pra que pagar, se a gente não recebe nada em troca?” – eram os mais radicais, apoiando essa prática.
Seus poucos clientes entravam direto para sua oficina, contornando a casa por uma entrada lateral.
- Vamos entrar com mais cuidado – somente agora o bom senso do marido começa a se manifestar, depois de terem feito aquele louco trajeto, movidos pela emoção e pelo desespero da mãe.
Agora, como que prevendo dificuldades, o homem apelava para a cautela e a precaução, difíceis de serem observados, mas necessários, numa situação de perigo – ou de incerteza, como essa em que se encontravam.
Mas não deu tempo para nada disso.
Nem cautela, nem precaução.
Só impetuosidade.
É que a porta entreaberta mostrava uma mancha vermelha: Sangue!
A mulher solta um grito, gritando o nome da filha!
Imagina o pior.
O pior é que quase sempre as pessoas imaginam o pior, numa situação de tensão, de desespero, de apreensão.
Imagina-se o pior por medo ou desespero, esquecendo que o desconhecido também pode reservar coisas boas.
Tanto se pode ter surpresas negativas como positivas.
E, na maioria das vezes, as surpresas são positivas: a visita de um amigo, o encontro com uma pessoa querida, achar uma moeda na rua, ganhar um presente,... são surpresas positivas. Funcionam como se fossem boas notícias.
Mesmo quando as coisas parecem negativas, ou abrem possibilidade para o negativo, muitas vezes trazem respostas positivas: um aluno que tira notas baixas, o ano inteiro, ao fazer as provas finais, dedicando-se no último minuto, pode se recuperar e ser aprovado. Um mal súbito ataca uma pessoa, ela pensa o pior, faz uma consulta e o médico mostra que era só tensão ou algum alimento indigesto.
Mas as pessoas quase sempre imaginam o pior.
E o pior também acontece.
E neste caso o pior ainda estava para acontecer…
Empurrando a porta, mais com o desespero que com as mãos, o casal ainda tem tempo de ver a cena. Terrivelmente real.
Nem nos filmes de terror barato, se produz cena semelhante.
O estupor, a tensão, o desespero derrubam a mãe, desacordada. O pai, mal tem tempo de segurar a esposa, desmaiada.
O grito, o barulho da porta e o filho da puta, que sai do grito de ira do pai, atraem a atenção do sapateiro.
Ele se levanta! É então que o pai vê a amplidão do desastre.
Completamente nu!
Assim estava aquele homem idoso.
Era ele: o sapateiro!
Do corpo nu escorriam grossas gotas de sangue.
Aliás, o sangue era agora a sua roupa, encobrindo todo seu corpo.
Na mão, ensanguentada, a afiada faca de sapateiro com a qual, enlouquecido, o homem retalhava o corpo, já sem vida, da menina.
A garota, inteiramente despida, estava jogada sobre sua mesa de trabalho no meio do salão que era a sapataria.
Podia-se imaginar que fora violentada. Aliás, a fúria do sapateiro fazia crer que fora interrompido em seu coito assassino com aquela pequena vítima.
Enfurecido o sapateiro lançou-se sobre o pai, que, estupefato, recebeu a facada no peito, à altura do coração.
Não deu tempo de nenhuma reação.
Caiu morto!
A mãe despertou do desmaio a tempo de ver o marido tombando ao seu lado.
O desespero, a fúria, e o medo lhe deram forças titânicas.
Levantou-se e agarrou uma pesada bigorna que viu a seu lado.
Mas não teve tempo de nada.
A faca do sapateiro atinge-lhe o pescoço.
O esguicho de sangue dá um banho no sapateiro, aumentando a crosta vermelha sobre seu corpo já completamente, ensanguentado.
O golpe faz a mãe soltar o pesado instrumento de trabalho.
A cena até pareceu tirada de filme de suspense. Mas foi só fatalidade que fez a bigorna dar aquela reviravolta no ar...
Neri de Paula Carneiro
Rolim de Moura – RO
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