Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap XVII - O CARRO SE FOI)
Mas a amizade de longa data e, talvez o instinto, o compele a ligar novamente e o homem da oficina seleciona, novamente, o número do amigo: sinal de aparelho desligado. Confere sua agenda. O número confere. Tenta mais uma vez. Novamente a mensagem de aparelho desligado.
Estupefato, do lado de fora do carro, permanece alternadamente olhando para o fogo e para o celular. Do outro lado da ligação, um rapaz, bem vestido, com porte atlético, com boné corintiano na cabeça, havia desligado o aparelho.
Sem entender o que estava acontecendo e sem saber o que fazer o homem vai caminhando em direção aos curiosos, vendo as chamas consumirem o restante da casa de madeira e o trabalho já inútil dos bombeiros que, na realidade, ocupavam-se mais em evitar que o fogo se alastrasse do que apagar o fogo da casa destruída.
No burburinho dos murmúrios dos curiosos ele para.
Todas as atenções fixas no fogo não percebem o carro.
Lentamente, como se uma mão invisível o guiasse o carro desliza pela ladeira levemente inclinada.
Tão lentamente começa a descida que realmente não chama a atenção. Nem o homem podia ter se lembrado de deixar o carro engatado, com o freio de mão puxado .
E assim ele, lentamente, começa a deslizar e também lentamente vai ganhando velocidade cada vez maior. Como também a ladeira, que começa, na altura da casa em chamas, com uma leve inclinação, vai se acentuando na medida que se aproxima do rio.
A retidão da rua impediu outros incidentes, ou acidentes mais sérios. Pois, nessas alturas as pessoas já estavam, como sempre acontece quando acontece uma desgraça, ou um acidente, ou uma catástrofe: reunidas para ver o fogo devorar a casa do casal que viajava.
E os comentários não podiam ser diferentes:
- Está vendo? Vai viajar de férias todo anos, mas não tem dinheiro para reformar essa casa velha. Agora toma. Quando chegar não vai ter onde morar.
- Que calamidade! Sai de férias e quando volta não tem mais casa. Isso é muito azar. Já estou até vendo o desatino que isso vai ser. Será que estava no seguro?
- Bem que eu falei pra ele: aquela fiação velha precisava de reparos. Na verdade precisava fazer toda a instalação de novo. Com instalação elétrica não se brinca
- Tenho pena das crianças. A menina tinha verdadeira paixão pela casa. Vivia falando dos brinquedos que a mãe comprava e que estavam fazendo a decoração do seu quarto.
Os comentários impediram que alguém visse o carro, agora já em alta velocidade, descendo velozmente a ladeira.
A rua, por onde desce a ladeira por onde desce o carro é reta. Pela rua reta ganha velocidade o carro, desengatado; rodando solitário!
A reta, na realidade acompanha toda a rua, que na verdade ocupa toda a extensão da ladeira. Mas o problema não é a ladeira. O problema é o fim da ladeira.
No fim da ladeira é o rio que fica na baixada. Um rio pequeno, mas seu leito localiza-se bem abaixo do nível da rua.
Mas o problema, para dizer a verdade não é nem a ladeira nem o rio pois um sem o outro ainda não é problema. O problema é a curva da ladeira. A curva, que põe fim à ladeira e está marcada com uma ponte. Uma ponte curva no encurvar da rua reta que começa onde termina a ladeira, sobre o rio.
Foi exatamente aí, nesse ponto, sem que ninguém percebesse, que caiu o carro do casal em viagem. Enquanto a casa era devorada pelas chamas o carro mergulhava, silenciosamente, no rio!
Afundou lentamente nas águas. Da mesma forma que o fogo consumia a casa. Água e o fogo devoraram os bens do casal enquanto o casal com os filhos viajavam de férias!!!
(Continua na próxima semana...)
Neri de Paula Carneiro
Rolim de Moura – RO
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