Escada de giz
Ouviu-se um som de vento, daqueles que batem em folhas secas que se tocam e orquestram o abismo. E não havia um só riso, e nem um pranto sequer. Havia uma mulher, a qual, não se sabe porque arregalara os olhos. Pode ser por ter pensado que não haviam árvores tão próximas, ou por ter sido dedilhada por uma reminiscência. No que pensava a mulher? Do que tem medo? Quantos segredos guarda entre os lábios e os dedos?
Determinara com espanto:
_O som se deu dentro de mim. Mas, se eu não sou um jardim!? Ora pois. Logo que há árvore, há de haver também algum passarinho macio sendo engolido por uma serpente. Uma serpente dentro de mim? Por isso meu ventre está seco e frio. A velha fogueira está quase inteira em cinzas tão leves. E eu, que achava que quando bebia vinho estava fazendo-lhe eterna, estranho.
Passara então a caminhar no jardim. E o chão era de pedras retangulares e esbranquiçadas. Lá estava viva a sua cadela morta. Avistara então a árvore. É daquelas que sertanejos passaram a arrancar por crerem que elas sugam gulosamente toda a água da superfície, sem preocuparem-se com as plantas menores. Mas essa, estava ali, enjaulada, cercada de concreto e tijolos. O cerco, já rachado, não é mais que a vontade de vida daquela verdoenga de folhas finas, duras e musicistas, cujas raízes se expandem a arrebentar solo e concreto, pintando-se com tom e aspecto de mãos de bruxa. As copas, produzem som de folhas secas sem secas estarem. Há mais adiante um girassol murcho. Estorricado. Mas devia estar radiante debaixo de tanto sol. A mulher senta no cerco da árvore. Olha todos os lados e não vê ninguém. Mas vê o vento varrer o chão suspendendo alto uma poeira de terra cor de ocre estorricado. Forma-se um redemoinho, e ela vê um saci no meio dele. Suspende a blusa até cobrir o rosto para proteger os olhos de ciscos e terra seca. Ela coriza. Vê entradas de algumas ruas, e não vê nenhum passante, até que avista um velho no banco de uma velha carroça de madeira esbranquiçada arrastada por uma égua amarelada e magricela. Tão magra quando o dono. Seu semblante é de cansaço e serenidade. Está-se na boca da noite que já germina uma aurora destacada de amarelo e rosa. E a égua passa, com passadas arrastadas e lentas. O velho segura as rédeas, mas a deixa bastante folgada, dando-lhe a entender que o manso animal sabe o caminho que deve ser seguido. Há lenha cinzenta na traseira, um cofo, duas abóboras com cara de magos mal humorados e três melancias bichadas, todas pequenas. Não é tempo de chuva. Um cão marrom também magricelo descansa e apressa o passo se aproximando da carroça cinzenta com a língua seca para fora.
O que resta do sol, doura o grisalho cabelo do homem. A mulher observa com feição de quem não pensa em nada ou como se houvesse se perdido em algum mundo alhures. Dá a volta e retorna até onde avistara a cadela, agora não mais viva. Seca e estorricada pelos dias de sol escaldante. Agacha-se perante o animal, parecendo não sentir odor podre, pois, enfia-lhe os dedos por entre as costelas e arrasta com alguma dificuldade um pedaço do couro seco e duro e põe-se a mastiga-lo até que ele se torna molengo e ela o engole. Naquele agora, um silêncio quase sepulcral se não fosse pelo som que vai se esvaindo da carroça - que se distancia rangendo -, e das passadas arrastadas da égua que já se adiantara à rua do sol poente.
A mulher avista no chão um pedaço de cal. Pega-o, e põe-se a riscar o céu. Faz um emaranhado de linhas que não parecem fazer nenhum sentido. Mas vira-se de costas e avista a lua minguante.
Desenha uma escada tosca até a lua e nela põe-se a subir. E sobe, e sobe, e a gestação da aurora vai lentamente amadurecendo enquanto a mulher vai vencendo os degraus. Bem no meio do caminho ela para, encara a lua, vira-se de costas a ela, e senta-se em um degrau. Avista um muro longínquo donde repousam calangos cinzentos. O céu vai se turvando e tudo o que podia ver embaixo vai se apagando. Deita-se. Ora ri, não se sabe de quê, ora chora como se o sol houvesse morrido e deixado viúva a lua, friorenta, deserta e em agonia de sentir a dor das carnes expostas de seu dragão sendo morto por São Jorge. Volta-se a pôr-se defronte a lua. Enxuga o rosto e como se nada houvesse acontecido, esboça uma feição de gozo e plenitude. Deita-se novamente na tosca escada de giz, impulsiona o corpo que passa a girar escadaria a baixo. E não parece ter fim. Seu corpo vai se desmanchando em salmoura amarronzada, borrando a escadaria, e fazendo chover uma chuva mansa de vermes.