Fumaças da percepção
O cheiro do café é um dos meus aromas preferidos, desde que comecei a me consultar com uma psicóloga por stress do trabalho e pelo fim do último relacionamento, a primeira coisa que ela me receitou foi escrever.
Neste dia, eu estava sentado num banco, na cafeteria que eu normalmente ia, tinha um balcão com uma vidraça virada para a rua. A dança que a fumaça fazia ao sair da xícara havia me enfeitiçado por alguns segundos. Abracei a xícara com a palma das minhas mãos, assumo que tinha até um certo sentimento envolvido, quando se observa melhor a vida se percebe que a solidão é o único sentimento que todos têm em comum, o que cada um faz para romper essa solidão, talvez seja a subjetiva resposta da felicidade. Aproximei a xícara do meu rosto e reparei que o simples ar que saia das minhas narinas ao respirar alterava toda a estrutura da fumaça, mas ela mostrava sua flexibilidade e não quebrava, apenas se adaptava ao seu contexto. Dei um gole, na esperança, que se eu usasse o paladar despertaria caso estivesse num sonho. Porém, a supremacia da realidade também dominava os meus sentidos, depois do líquido descer pela minha garganta e o gosto do café impregnar na minha boca, eu sabia que não se tratava de um sonho. Devolvi a xícara a mesa, como se fosse a peça de um quebra-cabeça.
Alguns minutos atrás, eu a tinha visto, mas a minha atenção é uma vítima da trivialidade urbana e num primeiro momento não a reconheci. Continuei caminhando pelas ruas das coincidências, passei pelo beco do acaso até chegar na esquina do destino com o futuro. Nesse cruzamento eu percebi que havia perdido o meu rumo, eu não sabia para onde estava indo nem o que eu ia fazer, eu apenas seguia uma multidão de pessoas que pareciam estar tão perdidas quanto eu. Porém, nesse mar de gente, os cabelos pretos surgiram como um arco-íris naquele dia cinzento, eu não sabia quem era num primeiro momento. Eu apenas a seguia. Nos aproximávamos do semáforo, eu acelerei meu passo e por algum motivo não estranhei ela estar usando um all star vermelho, com um jeans escuro e uma blusa moletom, tudo aquilo me soava familiar, os fones de ouvido, o óculos que ela usava a forma como ela balançava a cabeça escutando sua música. Eu tinha certeza que ela estava ouvindo the Strokes, pensei em perguntar, mas eu iria parecer um idiota. Eu tinha certeza que era ela, Luana, 23 anos, estudante de medicina, fumante nos fim de semanas e feriados, que não se apegava a ninguém, tinha um irmão mais novo. Ela gostava de futebol e participava de um Sarau semanal todas às terças-feiras às 8 da noite. Isso tudo não teria problema nenhum se fosse verdade, desde que a Luana não fosse uma personagem de um conto que eu escrevi e nunca publiquei. Eu estava nervoso, o farol parecia durar horas, o tempo, que normalmente é justo e linear com todos nesse momento parecia estar do meu lado e me encorajava a ir falar com ela. No meio da multidão ela se destacava naturalmente, fui andando em sua direção, me esquivando de corpos sedentos, como se fossem obstáculos na rota do meu objetivo, toquei seu ombro esquerdo gentilmente, o modo que ela virou a cabeça, tirou o fone e olhou para trás, era ela!! Vi toda a descrição angelical de seu rosto na minha frente, como eu havia escrito. Quando ela foi falar comigo, abri meus olhos e vi a fumaça do café entrando cuidadosamente pelos buracos da minha narina.