Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap IV – APÓS O ENTERRO)

Depois do enterro a família, ainda estupefata, prestou os devidos esclarecimentos à polícia.

Ficou claro que a causa da morte do velho guia havia sido uma conjugação de vários fatores: cansaço, excesso de fumo e álcool que culminaram numa parada cardíaca. Sem contar o já alto nível de anemia causada por insuficiência alimentar.

Tudo isso, evidentemente, agravado pela vida solitária que o velho guia levava após ter perdido a família, há alguns anos, num acidente de automóvel. Uma vida que todos na cidade explicavam da seguinte forma: ele ainda jovem pai e esposo, em viagem de férias, dirigia o carro recém adquirido. Após o almoço em que tomara, com a esposa, três garrafas de cerveja, seguiu viagem pela estrada movimentada...

Só ele se salvara das ferragens retorcidas, debaixo da carreta com a qual seu carro se chocou...

Naquela tarde, conduzindo os turistas, disfarçadamente ainda tomara alguns goles de um saboroso licor que carregava numa daquelas garrafinhas curvada que se vê nos filmes, a qual era carinhosamente guardada num bolso interno de sua inseparável jaqueta jeans.

Todos esses fatores se ajuntaram e produziam, no velho guia, aquela constante sensação de cansaço... coisa para a qual ele nunca dera muita atenção. Afinal de contas quem vive de salário mínimo mais uns caraminguás de gorjetas não pode se dar ao luxo de frequentar consultório médico. Só se procura o hospital quando já não se suporta mais a dor. E, neste caso, não havia dor: era sensação de cansaço... pois a dor que sentia, uma dor chamada saudade, permanecia anestesiada no álcool.

Não morrera, portanto, afogado, mas de insuficiência cardíaca, alimentar...

Após o enterro do velho guia, num cortejo triste, pai, mãe e casal de irmãos dirigem-se ao hotel.

Pagam a conta.

Pegam as malas.

Param um táxi e vão para a rodoviária.

Pedem as passagens a fim de continuar sua viagem de férias.

A opção pelo ônibus não teve nada a ver com o incidente do carro, na antevéspera da sua partida, no início das férias...

A intenção era fazer desta uma viagem ao estilo hippie, sem um destino certo, mas passando por vários pontos. Mesmo correndo o risco de ficar sem hotel, pois o que deveria prevalecer nesta viagem de férias deveria ser a aventura e as fortes emoções e a sensação do incerto. A certeza das incertezas seria o principal ingrediente das férias.

O carro em que sempre viajavam ficou em sua cidade, desamassando o capô sobre o qual havia caído um poste, na antevéspera da viagem...

Na verdade não foi bem o poste. O poste caiu, mas caiu sobre uma árvore. A árvore, de vários galhos, tombou para o lado do carro. Assim, na realidade só alguns galhos bateram sobre o capô do veículo. Mas foi suficiente para amassá-lo e quebrar algumas peças do motor. Peças que precisariam ser trocadas. Era, portanto, caso para um ou dois dias de oficina.

A seguradora assumira a despesa, mas nem por isso o serviço se adiantaria. Assim como a opção já havia sido feita pelo ônibus, dessa forma viajaram.

Mesmo com esses incidentes eles s mantiveram em clima de Natal!

Chegaram à rodoviária já com destino certo. Mas em cima da hora. Mal deu tempo de comprar as passagens e embarcar. O ônibus já de saída. O enterro os atrasara um pouco.

Já embarcados, viram o agente da rodoviária fazer sinal ao motorista para que esperasse mais uns instantes. Um retardatário estava comprando passagem.

- Dá tempo de descer e comprar uma garrafa d’água? – indaga o homem, dirigindo-se ao motorista.

- Só se o senhor for bem rápido!

Desce correndo. Entra na lanchonete, ao lado do guichê de passagem.

Nisso entra a pessoa que comprava passagem. O agente autoriza e o motorista põe o ônibus em movimento.

- Meu marido! – grita a mulher, levantando-se e indo até o motorista que finge não ouvi-la.

- Moço, meu marido foi comprar água! Não voltou ainda! Espere!

- Sinto muito, dona, mas o agente deu a ordem, eu tenho que partir. Se não a gente chega atrasado e eu não gosto de atraso.

- Mas moço, meu marido falou com o senhor! O senhor disse que dava tempo!

- Não foi bem assim, minha senhora. Eu só falei: “só se for bem rápido”. Ele não foi bem rápido...

A discussão prossegue enquanto o ônibus inicia a viagem.

Alguns passageiros se posicionam a favor da mulher. Esbravejam e falam para o motorista parar. Outros dizem que continue:

- Quem manda descer na hora do ônibus sair?

- Se tava com sede por que não bebeu água antes de embarcar?

Continua na próxima semana

Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura – RO

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