O Castelo reconstruído e sua anterior quase destruição

Henrique já estava cansando-se de Mia. Ela era repetitiva, queria jogar sempre os mesmo jogos e avessa a inovações. Quando ela não procurava por ele, achava bom. Assim podia vagar pelo Castelo, suas ruínas, ler os livros das bibliotecas sem fim e ter paz com sua solidão, com sua guerra.

Em um destes momentos de liberdade viu que havia uma mesa montada ao lado daquela árvore pequena, e atrás dela eu estava sentado, aguardando por ele. A maneira como me olhou deixava claro eu estava vestido de maneira muito esquisita para ele.

- Gostaria de se sentar Henrique, e conversar?

- Não há cadeira.

- Embaixo da mesa.

Quando olhou a cadeira embaixo da mesa ficou sem entender como não havia visto algo de uma cor platinada tão chamativa. Sentou-se.

- Como sabe o meu nome?

- Não quer saber o meu também?

- Depois.

- Bem, meu povo vive só, sem formarmos uma sociedade. Os nomes só são necessários para uma pessoa chamar outra pessoa. O único para dar um nome a alguém que existe sozinho seria ele mesmo. Porque ele faria isso?

- Se não tens um nome, por que pediu para eu te perguntar ele?

- Pedi? Eu queria saber porque não tinhas feito a pergunta, é diferente de pedir faça.

- Note, não se pode fazer duas perguntas ao mesmo tempo, uma precisa ser feita primeira, e decidi perguntar primeiro como sabias o meu nome. Acho que isso esclarece.

- Bastante, indicando suas prioridades e como julgas quais questões são mais urgentes. Sei o seu nome porque sou um observador externo, sei coisas sobre este lugar e sobre a Mia que não sabes. És parte deste lugar, e assim sei algumas coisas sobre ti.

- Está dizendo que és um bisbilhoteiro então?

- Não. Um bisbilhoteiro busca bisbilhotar, e eu sou um viajante, vendedor ou comprador, dependendo do julgamento. Eu tropecei, por assim dizer, neste lugar e nas coisas que sei sobre ele.

- Está falando do Jardim? Eu não sabia que eu era parte do Jardim.

- Do Castelo, eu tropecei no Castelo.

Certamente aquilo era confuso para ele. Enquanto pensava na resposta, Mia veio até ele e se manifestou.

- Henrique, estou te olhando e você tá engraçado conversando sozinho. porque que tá falando sozinho?

- Como assim sozinho? Estou conversando com esse senhor aqui!

Apontou para mim, e então Mia veio e tentou tocar na suposta pessoa que Henrique podia ver e ouvir. Sua mão se moveu livremente, estava apenas tocando o ar.

- Viu! você tem que pensar em brincadeiras mais legais.

Henrique se assustou com isso, e entendeu que o que estava acontecendo não era ordinario. Tomou fôlego.

- Mia, o que sabes sobre as coisas fora do Castelo?

- Como assim?

- As coisas que existem fora do Castelo.

- Não existem coisas fora do Castelo bobo. Dentro de um espaço a gente pode colocar coisas dentro dele e aí existem essas coisas dentro desse espaço. Mas nem existe existe espaço fora do Castelo, nem existe fora do Castelo. Por que hoje você quer ficar me zoando?

Olhando para a direção dos meus olhos com fixação, a expressão de incerteza. Eu desviei , mas não consegui disfarçar o meu meio sorriso.

- Por nada Mia, só quis brincar e. Se não gostastes peço desculpas.

- Não, tudo bem. estou indo tomar chá. Bora tomar chá e depois brincar brincadeiras de verdade, divertidas.

- Sim, sim, mas estou sem vontade de tomar chá. Acompanho depois.

- Então vem me ver tomando chá e depois brincamos.

- Agora quero repensar minhas estratégias nos jogos, para ser mais divertido. Vais com nossos outros amigos e irei me juntar a vós nas brincadeiras seguintes.

- Então está bom.

O silêncio posterior parecia feito de pedra., e então suavemente a pedra se racha.

- Antes de eu ir com ela…

- Queres perguntar se eu sou só uma miragem na sua mente, e se caso eu não seja, se realmente vim de fora.

- Quero perguntar? Não tenho muitos motivos para pensar que responderás a verdade a essas perguntas.

- Mas mesmo que eu mentisse, isto te daria informações.

- De que Maneira?

- As mentiras que as pessoas contam dizem muito sobre a verdade. Um mentiroso tem em sua disposição uma quantidade enorme de mentiras. Por que escolheu essa e aquela em particular, ao invés de outras? As mentiras que eles escolhem dizer e as que escolhem não dizer já diz algo sobre a verdade, talvez muito.

- Uma retórica muito boa. Então, respondas as perguntas que propôs que eu te fizesse.

- E assim terás uma ideia melhor de quais perguntas fazer, de quais perguntas são importantes. Tua desconfiança daquelas que te sugeri, considerando a possibilidade de serem distrações que te afastam do conhecimento importante, não é mesmo?

Agora seu tom facial mudou da curiosidade para o interesse.

- Queres evitar que eu descubra algo sobre ti com a próxima pergunta, tal como fiz quando deduzi seres egocêntrico, autocentrado, por apenas perguntar como eu sabia teu nome em vez de perguntar o meu. És inteligente, entendestes que as perguntas, como as mentiras revelam sobre quem as diz: Por que fez essa pergunta, por que agora e não antes ou depois? Mas respondendo a pergunta que não fizeste: Não leio mentes, apenas deduzo o pensamento das pessoas com base no que sei e observo. Isso faz com que me arrisque a errar, mas como um bom apostador, conheço as probabilidades bem como os silogismos. Para provar que eu estou fora da sua mente, vamos juntos até Mia e os colegas dela.

Fomos ao salão de dança, e eu lhe disse para dançar com Mia e os colegas dela, mas prestar atenção na música.

Enquanto dançava com aquela garotinha apaixonada por Mia, que tinha medo do sofrimento de ser rejeitada pelo seu amor e por isso tentava esconder seu segredo, e fracassando nisso. Ele estava me olhando, fui até um tambor que não estava sendo tocado e passei a bater nele fora do compasso. Quando Mia e os colegas dela perceberam a dissonância, parei. Os músicos, os dançantes, as pessoas todas não entendiam o acontecimento, mas ele entendeu.

Depois, Mia e os colegas dela e o Henrique ficaram comentado fervorosamente sobre o que havia acontecido, sem chegar a conclusão nenhuma a conversa ficou morna e depois fria e depois silêncio, e assim continuaram com suas atividades. Voltamos a ficar sós.

- Não vou lhe fazer mal Henrique, podes falar de mim para Mia e os colegas dela.

- Referes-te a eles como “Mia e os colegas dela” ao invés de dizer que são meus amigos.

Ele não era uma mera peça do tabuleiro, e sim um jogador. Ele também me analisava.

- Está fugindo do assunto de porque não falou deles sobre minha existência.

Ele ignorou.

- Estás tentando, sutilmente, me fazer pensar de maneira separada sobre mim mesmo e sobre eles. Se eu contasse sobre ti para eles bem poderia acontecer de acharem que é uma brincadeira minha e nada tu farias para corrigi-los, como foi no caso da Mia tentando te tocar. Bater no tambor foi apenas uma prova de mostrar como querias que eu soubesse que tu existes fora da minha mente. Há a possibilidade de que possas se manifestar apenas para mim, mas ainda assim poderias ter usado a situação do tambor para mostrar sua existência para meus outros amigos, mostrando que não te importas se eles sabem ou não de ti. Talvez, não que não te importes, mas queiras que eles não saibam de ti.

- E porque minha suposta vontade não é contrariada e tu revelas minha existência para eles?

- Por enquanto, não posso provar a tua existência sem tu permitires. Afirmá-la e não prová-la iria fazer meus amigos pensassem em mim como aquele imaginando coisas e eles os lúcidos, eles se pensariam diferentes de mim.

- De repente ficaste tão franco.

- Ser cuidadoso não estava funcionando. Agora vem a questão sobre a existência de um lado de fora do Castelo. Isto não mostrastes.

- De fato, não existe o lado de fora do Castelo. Um quadrado possui lados direitos e esquerdos, mas um círculo possui apenas um lado. Este universo se resume ao Castelo, que é infinito. Do mesmo modo que a circunferência não possui fronteira entre seu lado esquerdo e direito, e portanto é um pouco inapropriado falar de lados em uma circunferência, não há fronteiras entre os lados de dentro e de fora deste Castelo, de modo que essa terminologia é inadequada.

- Por nenhum caminho que comece no Castelo se pode sair do Castelo. Isto me parece mais um argumento de que não podes provar que vieste de fora do Castelo. Se não há caminho de dentro do Castelo para fora, como é possível que haja um de fora que chegue até aqui? Isso não seria evidência de mentira?

- Há uma pergunta não feita.

- Eu sei.

- Faça.

- Por que Mia? Porque chamar meus amigos de Mia e os colegas dela? em vez de dizer “os teus amigos”? Por que sempre se referir a eles através da Mia? E agora, satisfeito?

- Há coisas que não podem ser ditas dentro do Castelo. Eu sou um vendedor, venderei duas viagens: Uma para fora do castelo e outra para dentro. O preço é que ouças as respostas dessas perguntas. Uma vez que tenha pagado a compra, ou seja, ouvido as respostas, poderá retornar ao castelo ou não, dependendo da sua vontade.

- Não tenho motivos para confiar em ti, e na verdade creio que seja de propósito. Queres que eu desconfie de ti, porque de algum modo isto te é vantajoso. Queres que eu rejeite a proposta que fizeste.

Aquele soco precisava de uma manobra de alta performance.

- Isso não faz sentido.

- Não, isso tem um sentido misterioso. Dizer “não faz sentido” significa existir uma contradição nas informações, assim alguma precisa ser falsa. Dizer misterioso significa haver informações que não possuo. Conseguistes muito bem antever minhas reações, e se quisesses que confiasse em ti então tuas atitudes seriam as de pessoas gentis e simpáticas, então eu poderia ainda ter receios e pé atrás com a proposta, mas se eu aceitar era a intenção, ainda que a rejeitasse, simpatizaria por ti. Como não é assim, há uma razão para propor o acordo e uma razão para me induzir a rejeitá-lo. A mesma? Não é impossível com base no que sei.

A capacidade desse aí de analisar os fatos eram obstáculos que eu conhecia, mas não medi corretamente sua magnitude.

- Há coisas sobre o Castelo e sobre Mia que não podem ser ditas no Castelo.

- É impossível dizê-las ou dizê-las teria graves consequências?

- Ambos.

- Se algo não é possível, não pode existir e se não existe, não tem consequências, sejam graves ou leves.

- Então aceitas a compra?

- Terminaste a negociação? Ainda há muito para acertar.

Henrique tinha vencido, eu demorei para perceber isso. Será que ele já sabia?

- Quais coisas pesam a favor e contra a minha proposta? Se não existe o fora do Castelo, então aceitar a proposta é inócua, pois coisas que não existem não tem consequência, dissestes.

- Mas se houver, poderias me fazeres mal naquele lugar e sem qualquer punição, pois meus amigos não me alcançariam para o socorro.

O rapaz sabe ser afiado, que enfadonho.

- As coisas deste mundo não podem me afetar sem minha permissão, mas eu posso afetá-las sem a permissão delas. O que me impediria de te fazer mau aqui e aqui permanecer impune? Portanto, não quero te fazer mal de maneira alguma, pois se quisesse, porque ainda não fiz?

- Se há coisas que não podem ser ditas no Castelo, há coisas que não podem ser feitas no Castelo. Dizer é um ato.

No salão havia um muro de flores, e sobre elas repousava uma borboleta. Estendi minha mão e a borboleta voou e pousou sobre meu dedo.

- A ética é apenas uma estética. As coisas feias são ditas feias, e ações feias são ditas más. As lagartas são feias e matá-las é bom, mas borboletas são bonitas e matá-las é ruim, mas lagartas e borboletas não são, no final das contas, o mesmo animal?

Deixei o cadáver da borboleta cair no chão.

- Se te quisesse fazer mal, teria feito. Não fiz, então não quero.

- O preço para eu comprar as respostas é te acompanhar para fora do Castelo, não?

- Não. Comprar e vender são coisas muito distintas, nunca se deve confundir uma coisa com a outra. Eu estou vendendo duas viagens, que podes ou não usar depois de as tiveres comprado. O preço é que ouças as respostas.

Olhando para borboleta, aceitou a proposta.

Caminhávamos como se fôssemos dois queridos amigos pela avenida. Ainda eram por volta das oito no centro comercial e o movimento das ruas era abundante. Havia um ar místico naquelas ruas. Altas e imponentes árvores das calçadas fragmentavam as luzes dos postes ao chegar no chão e nas paredes dos prédios, um alto contraste entre a forte luz branca-amarelada e as muitas sombras irregulares e desiguais. Em cada passo entrávamos na absoluta escuridão e no seguinte era como se retornássemos ao dia.

Os altos prédios, retos como lanças, alimentavam a sensação de nossa pequenez naquele lugar. A avenida em que estávamos não era tão larga, e as ruas que davam até ela eram forçadas por sua estreiteza a serem de mão única.

Ainda havia muitas pessoas trabalhando dentro de suas empresas. As que já terminaram o expediente iam aguardar o transporte para suas casas ou iam a pé, pois na cidade não havia bairro comerciais ou residenciais, sendo todos uma mistura. Outros iam para lanchonetes, restaurantes, cinemas e bares ou simplesmente encontravam um lugar para sentar e conversar com amigos nos shoppings, praças e qualquer lugar que service.

- Henrique, a cidade vive, nunca para. Não existe momento algum em que todos os seus habitantes estejam dormindo. Todos os dias, na madrugada, quando os últimos estão indo descansar, os primeiros acordaram há tempo e já estão trabalhando ou se dirigindo para o serviço.

- Gostei deste lugar. Daqui especificamente, dessa coisa com nome Cidade.

- Este lugar é uma cidade. Há muitas por todo o mundo.

- Inúmeras cidades neste mundo, tal como são inúmeros cômodos no Castelo?

- Não é bem assim. No Castelo existem infinitos cômodos, enquanto que no mundo só há uma quantidade finita de cidades, apenas algumas milhões.

Violando as regras da prefeitura, um bar continha mesas na calçada, fomos até ele e nos acomodamos em uma delas. Estávamos embaixo de uma árvore com altura razoável, mas ela não fazia sombra sobre nós e a luz do poste e de dentro do bar nos banhava.

- Agora tens que ter um nome.

- Por que?

- Estamos juntos, e assim tenho que poder te chamar.

- Acredito que eu sou o único que conheces que não tem um nome, isto não é um traço individualizante?

- Todos esses passantes não tem nome para mim. Tenho de te separar deles.

- Aceito. Qual nome me queres dar?

- Eu sugiro um no meu idioma.

- Recuso. As línguas dos moradores do Castelo são demasiadamente complicadas na sintaxe. Sugiro então que pense em um nome que não seja um nome primitivo, meramente um indicador, mas um nome descritivo, de modo que seja sempre possível traduzi-lo para outras línguas, dos diversos povos dos diversos mundos pelos quais passeio.

- O mundo de onde viestes se parece mais com esse onde estamos ou com o Castelo?

- Na verdade eu não sei. Nunca conheci ninguém que soubesse tudo sobre seu mundo, e quando comecei a ser viajante sabia muitíssimo pouco sobre meu mundo, mas na época eu não sabia que meu conhecimento era pouco. No infinito, as coisas finitas começam a se repetir, de modo que encontrei mundos com partes muito parecidas com as partes de meu mundo original que eu conhecia, dificultando a distinção entre uma coisa e outra. Na verdade, eu até poderia ter voltado algumas vezes ao mundo onde nasci e não saber que estava nele. Se você não sabe onde começou, não importa que descubra onde está agora que conheça todos os lugares do tabuleiro, não há como saber qual é o caminho para o começo.

- Nossa convivência tem te tornado falante.

Era verdade. Estava me acostumando com ele, como quem se acostuma com comida picante, e quando vai comer alguma outra coisa, pede para por pimenta.

- E o nome?

- O.

- Apenas isso? o som “O” será meu nome?

- Sim

- E como irei traduzi lo para linguagens que não forem sonoras?

- Antes tu não tinhas nome e achavas que tudo bem.

- É fácil traduzir nome nenhum. O silêncio pode ser dito em todas as línguas, mas e O, como que faço?

- Nas línguas feitas de sons, há nomes para coisas visuais, como vermelho. Em línguas visuais bem pode haver nome para coisas sonoras, de fato, em quaisquer línguas pode se descrever coisas sonoras, e uma vez feito isso, seu nome pode ser traduzido para elas.

- Há tantos candidatos melhores. Andarilho, Eremita, Ninguém, Outro, Estrangeiro, Viajante, Desconhecido, Misterioso. Todos são conceitos universais de todos os povos, e se meu nome tivesse sido um nome descritivo a partir desses conceitos a tradução seria simplificada.

- Não precisas de mim para ter um nome, podes te dar si mesmo. Mas nomes são coisas que servem para os outros te chamarem, e um solitário dar um nome a si mesmo é sem propósito.

Minhas palavras! Henrique já sabia quais coisas me irritavam, então fez porque quis. Mas porque é que queria me irritar!

- Vamos logo ver a Amanda.

E o nome levou embora o sorriso mal disfarçado do zombador. Será que ainda moravam esperanças de ser mentira? Pagamos a conta do bar.

Conforme andávamos pela paisagem que já descrevi, lembrava-me dos impressionistas, que brincavam com a sombra e a luz, a forma e o vazio, o transitório. A cidade era uma pintura impressionista, com as árvores dos góticos, prédios altos dos futuristas e caminhos de ruas estreitas.

Nossa proximidade aumentando com a Amanda, não podia ser que Henrique estivesse calmo, mas tudo para ser visto nele era solenidade. Amador, se mostrar inabalável numa situação de alta gravidade mostra bem como se foi afetado. Quisesse enganar devia ir como quem vai a feira. Ninguém vai a feira solenemente.

- O senhor é o que da paciente?

- Amigo de escola. Soube bem recentemente do estado dela. A família a visita com frequência?

Henrique era ótimo em encurralar com perguntas. Pobre atendente.

- Os pais vinham bastante, mas aí a mãe teve problemas de saúde e o pai fica cuidando da mãe dela, a esposa.

- Então um enfermeiro poderia me acompanhar, já que imagino que não posso ir sozinho.

- Pode sim. Ficam dois pacientes por quarto. O outro paciente está apenas com o acompanhante, e como são permitidas duas visitas juntas para cada paciente, pode subir tranquilamente.

Chegamos. Por que ele exitou em abrir a porta? Foi meio segundo, mas exitou.

- Boa noite senhoras.

A outra paciente e a acompanhante estranharam aquela, mas responderam cordialmente. Ele sentou-se entre Amanda e a outra paciente, perto da escrivaninha onde estava um caderninho e uma caneta.

Os três ficaram papeando, e aí descobri que a acompanhante não era filha, mas ex nora. Ela e o namorado terminaram há um bom tempo. Ele já tinha esposa e filha com a nova mulher, mas a ex permanecia amiga da velha. As pessoas são esquisitas.

Henrique terminou de conversar. Elas com certeza estavam encantadas com a polidez e erudição do adolescente. Depois de nos conhecermos ele também usava esse trato comigo, mas a brincadeira do nome foi de muito mau gosto. Tive vontade de contar que, além de mim, na verdade ele era a pessoa mais velha na sala, muito provavelmente no hospital também.

Foi falar com ela, no pé do ouvido, um sussurro que ninguém mais poderia ouvir.

- Amanda, é um prazer conhecer. Há algumas coisa que tenho de te dizer. Eu conheci a Mia no castelo, e ela gosta muito de mim, o que me faz pensar que tu também gostarias se convivêssemos. Ela é muito estressante, mas eu costumo ser gentil sempre, mas quando ela consegue me tirar do sério e eu faço comentários maldosos ou brincadeiras espinhosas, ela não fica com raiva porque apesar de ser muito, mas muito mais inteligente que qualquer pessoa que eu conheça, é a mais das distraídas. Por isso eu sei como seria maravilhoso ter um diálogo contigo ao invés de um monólogo. Queria também que vocês duas pudessem se ver e conversar uma com a outra, mas não sei se é possível, se é possível que as duas existam juntas em um mesmo mundo. Mas as duas podem existir em mundos diferentes, e se comunicar através de intermediários, mas o custo e as consequências de fazer isso são altos demais, e eu sou covarde. Eu queria que pudesses me julgar, mesmo que fosse para condenar. na verdade, acho que se tu me condenas essa memória seria mais leve que a do perdão, mas qualquer das duas seria melhor que essa situação, a de não poder ser réu, não ser acusado. Agora eu e O devemos tomar uma decisão, e isso é triste pois somos os menos altruístas e confiáveis que existem, mas me esforçarei para eu ser o minimo de mim possível. Eram tu e Mia quem deveriam tomar essa decisão. O Castelo, este mundo e as pontes entre eles dois são coisas muito terríveis por terem impedido que fosse assim.

Depois disse um discurso parecido no seu idioma, um dos do castelo. Por isso pensei que era com a Mia que estava falando, mas o conteúdo das palavras não deixou isto claro.

- Moças, guardem essa carta aqui e deem para a Amanda quando ela acordar.

Elas se entreolharam. A velha parecia compadecida e a jovem confusa.

- Henrique, ela…

E o fim da frase não veio. Então estendeu a mão para pegar o papel.

- Sabem, Henrique é um apelido, e quem fez foi esse meu amigo aqui, diga a elas.

Quando olharam para mim, me vendo, se assustaram. Mas Henrique é irritante.

- Desculpe não conversarmos com você, é tão quieto.

- Não, tudo bem, sou meio tímido.

- Como se chama?

Sua vitória Henrique, pode comemorar, eu deixo.

- Meu nome é O.

- O? Como assim?

- Somos estrangeiros. Henrique não é bem uma tradução do meu nome, o termo é transliteração e adaptação, penso. Meu nome está na assinatura da carta. Podem lê-la. Gostaria que lessem para dizer se está boa, se a mensagem e as palavras são bonitas, são adequadas.

Obedeceram. Ficaram com o olhar esquisito.

- Não lemos partitura de música. Ela era uma boa música?

Henrique desgraçado, escreveste a porcaria da carta no seu idioma! Num do das gentes do castelo! Hoje estás demais, demais.

- Péssima musicista, mas sempre admirei seu amor que nas atividades do trabalho.

Como assim? É uma invenção, uma mentira, enigma? Ou uma verdade difícil de entender? Ele conheceu Amanda hoje, o que quer dizer isso?

Saímos do quarto. Estranhei que não perguntaram novamente o nome dele. Talvez o julgassem meio maluco.

- Que dissestes a Amanda?

- Tu sabes, tu estavas ouvindo.

- Eu não estava. E na carta?

- Tu a leste.

- Gostas de me irritar. Me revelando aos outros sem que eu mesmo o faça, por exemplo. Porque gostas de me irritar?

- Porque somos amigos e assim gosto de te agradar.

- Eu entendi as palavras que dissestes, mas quando junto tudo a frase não parece ser uma frase.

- És do tipo que gostas de sabores fortes, Comida muito temperada, da provocação.

Essa mente dele assusta.

- Vamos voltar.

- Sim, mas Henrique, antes de irmos para o apartamento, Vamos comer aquela Yakissoba do…

- Voltar para o Castelo.

O nome era torre pequena apenas por ser menor que as outras. No andar que estávamos, a distância entre duas extremidade da parede, pois eram salões circulares, 150 quilômetros, e do chão ao teto 90. Milhares de andares, acho, pois de longe se via um fio de cabelo pendurado a terra e que caia para cima ao invés de para baixo, um risco no céu. A luz dentro era estranha, não entendo bem como um lugar tão grande pode ser tão bem iluminado com velas em candelabros e lustres.

- Bem Henrique, ela estava comigo agora pouco, mas foi para o salão de jantar. Seja polido, ela tem estado irritado por não lhe vermos esses dias.

- Obrigado Abel. O que pensou de nossa conversa?

- Não sei amigo. É tanta coisa estranha, mas tu pareces tão seguro de haver sido assim. Contaste-me tudo?

- Não, mas primeiro preciso conversar com a Mia. Até bem breve.

Conforme-me andávamos, me sentia angustiado com o destino do Castelo. Era um lugar magnífico, e em nem todo lugar possuía leis físicas que permitissem aquelas construções.

- Tomou mesmo sua decisão?

- Não.

Ser direto não adianta, tenho de ir de tangente em tangente.

- Como é o salão de jantar?

- Não sei o motivo do nome, ele funciona em todas as refeições. Em cada refeição é servida comida que alimentaria todas as pessoas daquele mundo, desde de a descoberta do fogo até o pouso na lua, se poderia alimentar todas elas juntas e ao mesmo tempo!

- Algo te incomodando?

- O, tu gostas do Castelo?

- Sim.

- Apresente-se aos outros.

- Tu mesmo podes fazê-lo, Já que podes me perceber sem que eu permita.

- Apresente-se aos outros, vá conversar.

- Henrique, sei que és o mais inteligente de nós, mas não seja confiante demais em seu plano, não faça apostas de tudo ou nada.

- Apresente-se aos outros.

Obedeci, mas dane-se a moralidade ou qualquer coisa, mesmo longe permanecerei observando e ouvindo, se faz necessário.

- Boa tarde Mia.

Ela olhou, fingiu uma postura casual.

- Boa tarde. Como tem passado?

- Bem. Mia, eu me lembro de quando chegaste no Castelo.

- Como foi?

- Antes eu passava todo o tempo lendo nas bibliotecas. Lia sobre os salões e os jardins, os cômodos e a as passagens entre eles, as torres a as pontes entre as torres. Já fostes na estrada Celestial? É uma ponte entre o topo de uma torre e um dos andares de outra maior, assim a ponte não possui inclinação. Por três quartos da ponte as duas torres estão tão distantes que não se pode ver nenhuma. Aprendi muitos dos idiomas falados no castelo, o dos jardineiros, dos zeladores, dos construtores, dos intendentes, dos cozinheiros, dos pintores. Sabia que existe mais de um idioma usado como língua franca? Aprendi línguas não usadas também, aprendi sobre as histórias dos lugares.

Ele sentou-se.

- Mas nunca ía nesses lugares, e pouco conversava com qualquer pessoa além de intendentes e bibliotecários, e mesmo os intendentes estavam longe de conversar comigo tanto quanto os bibliotecários. Ambos são conhecidos como os dois povos calados, com razão, e vez por outra corre até o boato de que os bibliotecários são mudos.

- Mas na verdade é apenas porque eles só conversam entre si?

- De modo algum. Embora conversem entre si, é muito mais comum conversarem com alguém que não é bibliotecário. Os intendentes sim costumam conversar mais entre si do que com os de fora. Eu era o intendente absurdamente fora do normal, por assim dizer. De fato, alguns de meus amigos bibliotecários me convidaram para ser um deles, e eu aceitei. Por isso sou bibliotecário e intendente, um dos muito poucos que está em mais um povo. Depois desse fato pouco comum, e talvez por causa dele, minha amiga Abel passou a se tornar uma bibliotecária atípica. Ela passou a conversar muito, de modo que agora há alguns bibliotecários que conversam mais entre si do que com outros povos. É uma revolução radical Mia! Durante tão boa parte da eternidade os bibliotecários conversaram mais com os outros do que entre si, de modo que nem tinham um idioma próprio, tendo de usar alguma língua franca.

- Intendente, bibliotecário e cronista. Nossa como você é versátil viu.

- Não sou cronista, mas os gosto por serem um povo estranho. Também não possuem um idioma só seu, mas diferentemente, são o povo que mais conversa, de modo que é difícil saber se conversam mais entre si ou com os outros. Muito, mas muito poucos mesmo são apenas cronistas, a maioria está em algum outro povo também, como a Abel, que é bibliotecária e cronista. Nossas histórias são parecidas sabe? Quando já era também bibliotecário, decidi por mim mesmo ser cronista, ao invés de ser convidado, como fora antes. Sabendo disso, Abel também quis, e diferente de mim ela de fato se tornou. Mas eu seria um cronista absurdamente atípico, não só porque era calado, como por estar em três povos. Brinca-se que quando alguém está em mais de um povo, está no povo cronista. Outra brincadeira diz que é possível contar nos dedos de uma mão todos aqueles que estão em três povos ou mais: Basta fechar a mão. Acho que isso me faz ser o ninguém, já que mesmo não me tornando cronista, acabei por indo estar em três povos de qualquer maneira.

- Onde quer chegar?

- A Abel é apaixonado por ti.

- Ela te pediu para vir dizer? Você foi péssima escolha, falou mais sobre si mesmo do que sobre ela.

- Ela não pediria a alguém para fazer isso por ela, suponho que sabes. Também sabias antes de eu dizer que a Abel era apaixonada por ti. Por que não a aceita? Ou rejeita ela de uma vez? Porém a mantém de reserva, na expectativa e em sofrimento.

- Ela ainda não se confessou.

- E isso te é conveniente. Tenho a certeza de que toda vez que percebes que ela está começando a confessar, tu dás meia volta nela e assim a situação se mantém, porque essa situação te é conveniente. Ela me disse já ter tentado, mas que por não saber conversar, não soube andar com a conversa. Ela sabe conversar muito bem, mas tu sabes conversar muito melhor que ela, infelizmente para a minha amiga.

- Eu sou a sua amiga! Fica aqui falando da Abel, pensei que fosse falar sobre quando nos conhecemos.

- Eu criei o hábito de passear pelas ruínas do Castelo. Elas competem junto com as bibliotecas em certos períodos em se tornarem os lugares que mais visito. Adoro fazer levantamentos e relatórios sobre elas, olhar para os passados. Te encontrei em uma delas, mas eu não disse que iria falar sobre isso. Mia, tu me ouviste no começo?

Ela parou, lembrou e percebeu.

- ...Quando cheguei no Castelo. Mas eu não cheguei de outro lugar, só existe o castelo. Do que estás falando?

- Conheci duas pessoas nesses tempos que estive sumido que agora são muito importantes para mim. Não sei se alguma das duas é minha amiga de verdade. Não que tenha raiva delas, pelo contrário, guardo bastante afeto agora, mas sou realista.

Os olhos saíram da Mia e foram para as próprias mãos. Agora percebo que antes elas estavam calmas e agora não param quietas.

- Um deles chama-se O. É extrovertido e falante com todo mundo quando quer, mas não é espontâneo. Cada palavra e até gesto é calculado de antemão, como um jogador de xadrez. Na verdade ele é solitário e fechado demais. Ele é como um lugar com o pátio e a sala de recepção encantadores, mas cômodos mais internos estão absolutamente trancado, sem quarto de hóspedes. Não é má pessoa, muito pelo contrário, gosto bastante dele, mas é difícil dizer que se é amigo de alguém assim.

- Ele também é do povo dos instrutores? Dos intendentes ou bibliotecários?

- Ele não é de povo algum no nosso sentido da palavra povo. Ele é um estrangeiro, alguém que veio de fora do Castelo.

Aqueles risinhos cínicos mas sinceros da Mia, como essa garota é tão popular?

- Como esse fez para te enganar?

- Me levando para um dos lugares fora do Castelo.

O baque foi forte.

- Como assim? Me conte!

- Dei um relatório para Abel, ela é cronista. Fale com ela para poder ler quando ela terminar.

- E ela acreditou?

- Eu disse que se ela não acreditasse, para arquivar na ficção. Saberemos a que conclusão ela chegou ao final de suas reflexões.

- Onde está esse O?

- Passeando pelo Castelo, se apresentando para as pessoas.

Ele tirou um papel do bolso e escreve “eu sei que estás observando, mas podes ir fazer isso que falei também, não achas?”

Certo, isso mesmo que está fazendo amigo, amasse bem esse papel e jogue no lixo, eu faço o que bem entender.

Você não voltou a sentar, permanece em pé com as mãos apoiadas na cadeira, o que está fazendo?

- Henrique, antes de eu ir falar com ele, quem é a segunda pessoa que comentou?

Henrique, te peço racionalidade, tudo que está em jogo, seja a própria prudência!

- Imagine uma menina. Um dia ela dorme. Os componentes do seu sonho vão formando estruturas, ganhando forma, tal como a matéria bruta vai criando estrutura e ganhando forma até ser viva.

Pare aqui Henrique, pare por si mesmo e por aqueles que me disse amar.

- Sabe, eu vejo a diferença das coisas vivas e não vivas como a forma que estão organizadas. As coisas não vivas apenas reagem umas às outras. Mas as vivas usam as coisas ao seu redor para construírem a si mesmas, as coisas vivas são as construtoras e as obras de si mesmas a partir dos recursos que possuem, as construções não vivas tem de ser construídas por outras coisas. Assim também penso as mentes. As mentes simples, como das máquinas de calcular, meramente reagem aos estímulos, enquanto as mentes conscientes constroem a si mesmas através dos recursos que dispõem. Imagine que os objetos dentro do sonho da menina chegaram a esse nível de complexidade.

Eu sempre fingi que não me importo, mas me importo. Agora tive de sair do Castelo para poder observá-lo com segurança, mas Henrique, eu não quis isso, eu queria poder dizer tantas coisas aos habitantes deste lugar maravilhoso!

- Essa conversa é esquisita Henrique.

Você interrompeu a insanidade, ainda bem.

Precipitei-me? O que escreveste nessa outra página que retirou do bolso?

- Leia e guarde na mente Mia, mas guarde muito bem.

Ela olhou pro papel.. O texto é muito simples, e isso torna tudo mais difícil de entender.

- Estou imaginando essas coisas que você disse, da vida e das mentes, ou tentando imaginar, não sei se imaginando corretamente.

- Entendeu e decorou bem as palavras no papel minha amiga?

- Sim.

Para que isso, para que ela precisa decorar!

- Imagine que a menina fosse musicista.

O primeiro abalo no Castelo se deu, torres tremem, pontes balançam, pessoas tropeçam e tudo mais, mas o Castelo permanece. Ele precisa permanecer Henrique!

- O que é uma musicista?

- Ainda se lembra do que eu escrevi?

E ela pronunciou.

- Pense nessas palavras, não se esqueça dessas palavras Amanda.

O segundo impacto veio. No hospital, a menina desperta, e em desespero olha ao seu redor, encontrando a caneta e o caderno da escrivaninha. Desesperadamente ela escreve aquilo que Henrique lhe mandou não esquecer. Lê e fica aliviada, lê diversas vezes e isso a deixa feliz, pois vai reconstruindo o Castelo a partir dos escombros, se lembrando e se lembrando mais e mais, até que a senhora do quarto percebe que ela acordou.

- Isabelle, olha, a moça despertou! A moça despertou.

- Sim Dona Carla! Moça, você está bem?

- Estou sim.

E Isabelle sai do quarto para chamar uma enfermeira.

- Sou Carla, estive dividindo esse quarto com você por três semanas, me contaram o seu estado e fiquei tão triste, o que aconteceu hoje é um milagre. Olhe, eu mesma não acredito em coisas sobrenaturais nem em deus, mas a palavra milagre descreve bem o que acabou de acontecer aqui. Bem que aquele seu amigo que veio não tinha perdido a fé. Olhe, ele deixou isto para você.

Tomou a carta, abriu e leu. A alegria e alívio estavam completas por que algumas coisas eram difíceis de ler de primeira, mas eram as mensagens que Henrique deixou para ela, mas então percebeu que não tinha certeza do que havia acontecido com ele e com os outros, e a cada leitura, apesar do texto e significado se tornarem mais transparentes, incerteza e aflição aumentavam em seus pensamentos. A enfermeira entrou.

- Boa noite dona Amanda, como você está?

Ela não reagiu.

- Amanda?

Ela estava ficando confusa. A tempestade em sua mente, coisas indo e voltando, surgindo e desaparecendo.

- Seu nome é Amanda, você se lembra né?

- Sim, sim, meu nome é Amanda.

- E o que mais?

- Sou estudante do curso de música na universidade, tenho quase 19 anos.

- Você não tem mais 19 anos, mas se acalme, tudo ficará bem.

Dona Carla entra na conversa.

- O que é que o Henrique escreveu para você?

Olhando para a carta, não mais compreendia nada. Ela sabe que antes havia algum sentido naqueles riscos, mas se perderam.

- Quem é Henrique?

- O moço que veio lhe visitar ontem.

Ela pois a carta de lado e pegou o papel que havia escrito. A mesma Coisa.

- Não sei o que está escrito na carta. Não sei o que está escrito nesse papel também.

Sentiu sua angústia e tristeza sumirem. O que a estava deixando preocupada antes? O eu diziam os papéis?

- Seu nome é Mia. No papel que tu escreveste, está escrito que seu nome é Mia.

Eu disse para ela enquanto entrava no quarto.