A Sorte dos Pica-paus do Norte
Vou lhes contar uma estória. É a necessidade de me comunicar e de espantar um medo de muito tempo. Escutem:
Uma época atrás, ainda não havia cidade de pedra nem era Idade da Pedra, as casas eram só de madeira. Por qual motivo, não sei. Sei que eram. Mas para que razão ficar achando nexo nas estórias? Estórias são estórias, gente!
As casas de madeira. Povo comodista, trabalhava, comia e dormia. Todos os anos vinha o enxame dos pica-paus do Norte. Vinham, ficavam três meses, me parece que à época da floração das pimenteiras.
Enquanto durava a estação das pimenteiras, os pica-paus do Norte se atiravam com volúpia à destruição da civilização de madeira. Comodista o povo. Por que não inventaram logo a Idade da Pedra? Há sempre alguém não querendo inventar a Idade da Pedra.
Assim. Todos os anos, à época da estação das pimenteiras, vinham os pica-paus do Norte. E destruíam pouco a pouco a civilização de madeira. O barulho grande levou o povo a construir abrigos subterrâneos públicos em pontos diversos. De forma que os pica-paus do Norte jamais viam uma pessoa do lugar.
Marzinho era meio maricas, gostava de bonecas e de chorar. Quinze anos. Porém não o amedrontava o enxame dos pica-paus do Norte. Não podia era com o barulho. Não se importava com a destruição progressiva de seu lugar, de sua cidade, de sua casa. O barulho dos pica-paus batendo as asas parecia o de milhares de ventiladores ligados nos ouvidos.
Uma vez – Marzinho era sempre o último a entrar no abrigo – uma vez os pica-paus deram de ver Marzinho sumindo no tampão e ficaram encantados com aquela forma de vida diferente. Que jamais tinham visto igual. E passaram a planejar de levar Marzinho.
Um diplomata do reino dos pica-paus quis por bem encontrar uma forma conciliatória com aquela civilização de troncos. Os homens são troncos para os pica-paus, por analogia e generalização de estímulos. Que expliquem os psicólogos.
Não houve jeito de levar Marzinho por bem. À época da floração das pimenteiras, guardavam Marzinho a sete chaves. Vieram uma vez mais cedo, antes de florescerem as pimenteiras, e pegaram o pobre Marzinho, molenga e choramingoso, sem direito a resgate, só com a promessa de não voltarem nunca mais, muito embora já não importasse tanto: as casas já estavam quase todas destruídas e não adiantava aquela tardia continência.
Os pica-paus do Norte, eu os vi: levaram Marzinho uma tarde, o sol já quase em fim, tomando o velho caminho do Norte, a cidade melancólica, toda entristecida.
No entanto, fiquei sabendo que não suportaram Marzinho muito tempo. O choro constante os incomodava muito e o deixaram de língua de fora, roxo e enforcado com a Linha do Horizonte. Não sei é como alcançaram o Horizonte, que é sempre mais além.
Sabe, às vezes sinto ventiladores ligados e olho apavorado para o Norte, com receio de voltarem. É por isso - só por isso - que olho tanto para o Norte: puro medo.