VILA - O Conto

Este conto, dividido em três partes, tem a primeira inteiramente constituída pelo poema “VILA”, de 2013, publicado aqui no RL, integrante de “VIAGEM AO PAÍS DOS SERES HUMANOS”. Eu pus o poema aqui como introito, sem uma genuína conexão temática com a vila do conto, exceto o modo de se chegar ali, indicado no poema.
 
–– I ––  
VILA

Era a minha estrada nada estranha
Em seus meandros e vislumbres.
Ocorreu, porém, a certa altura
E súbito, de chamar-me a atenção
Uma longa alça do caminho,
Que se arrastava pelo sopé de uma colina,
Alongando a tediosa distância
Sem nenhuma razão de ser,
Ao passo que, pelo outro lado,
Um belo descampado se oferecia
Como atalho lógico e inevitável.
Eis que presto, pus-me por ali.
Contudo, a meio do imaginado
Atalho – não mais vislumbre,
Não mais meandro, não mais estrada –
Magicamente eu me perdera.
Fazer o quê? Seguir adiante. Algo,
Sempre um inefável algo, aparece.
De fato, nem sequer rodara a hora,
Defrontei-me com uma inesperada vila,
A que a estrada não me conduziria,
Por certo, já que luzente e fantástica.
Habitada, sim, por gente de outro afã.
Ali o corpo se nutria de não alimento,
Ali a refrígera água saciava a alma
E a dor doía, mas jamais no corpo.

Um dia, quando houver conquistado
Todo, literalmente todo, o mistério,
Esse será o Grande Império
E eu, o Imperador destronado.
Quando, enfim, eu houver
Decifrado o mistério,
Ter-me-ei tornado
O mistério dos mistérios.

Na memória, o passado é o futuro
Que se transmuda, a cada nova recordação,
No que jamais ocorreu
(ou eu ainda não o sabia),
No que ainda é o porvir.
Sem querer, mas por uma Graça,
Eu achei quando me perdi.



 
–– II ––
Assim foi. A vila pareceu-me meramente bucólica – pessoas simples em seus gestos e propósitos, recebendo-me hospitaleiramente. Quero dizer, alberguei-me na casa de “seu” Flávio, misto de farmacêutico e de estalajeiro, aos cuidados da esposa, dona Rosinha, claro! – ela, anfitriã misto de discreta e de eficientíssima, como se de longa prática. Eu precisava de uns dois dias de repouso e de reflexão, para decidir sobre esse impasse de quebra de itinerário. Não havia cisma entre nós, moradores e recém-chegado, e, já desde as primeiras horas, a conversa iniciou fluida e cordial, começando eles pelas banalidades. Com o “seu” Flávio, insisto, quando ele pôde fechar a farmácia e vir inteirar-se de seu hóspede. Em minutos, chegariam amigos dele, visitantes curiosos acerca do forasteiro.
“Seu” Flávio era um homem culto e sensato, assim como me pareceram os demais. Chamei de banalidades perguntas como nome, idade, estado civil, ofício, procedência, etc. – afinal, em qualquer “check-in” de hotel, isso se dá, de forma regulamentar. Nem era eu portador de segredos ou discrições. Somente que ali as questões eram em tom informal, cuidadoso, pausado:
– “O amigo faz o quê?” (...) “O amigo vem de onde?” (...) “Tem família?”.
Ora, chamou-me a atenção o fato de nenhum deles, na minuciosa inquisição, me haver perguntado para onde eu iria, como se, a partir dali, eu fosse ficar com eles para sempre (virei vilão, brinquei com os meu botões). Deixei a questão em remanso e seguimos trocando prosa amiga, com direito a contar um caso ou outro.
Seguindo a tradição vilareja, às nove e meia os amigos foram dizendo o “Bom, já vou chegando; até amanhã!”. Dona Rosinha serviu um mate com biscoitos do dia e... “Cama, para que vos quero?”, disse eu, então.
A manhã foi de andanças para conhecer a vila. Todos me tratavam com aquela cordialidade de uma não autorizada familiaridade. Isso fez com que eu evitasse parar e espichar conversas. Porém, foi inevitável o encontro com dois amigos da véspera – nesse caso, a prosa, por cortesia, foi mais longa, tempo suficiente para que encostassem mais alguns curiosos de praça. Inclusive Padre Gileno, a caminho da igreja, se acercou para saber o que estavam aprontando as suas ovelhas. Ao ser-me apresentado, fez-se meu amigo e, na despedida, recomendou-me que não faltasse a suas missas. Até ao horário do almoço, era minha a sensação de ser um custodiense – a vila se chamava Custódia e no passado fora Vila de Nosso Senhor da Custódia, contara-me o padre.
Loucura... eu estava ali provisoriamente, desgarrado. Acordara com a convicção de que: “Parto amanhã cedo”; contudo, era apenas uma forma de curiosidade ou de cortesia que me impedia de levantar ancoras naquele instante, eis que nada mais justificava a permanência ali. De algum modo, o segundo serão com “seu” Flávio era imperativo, providencial.
E foi mesmo, assim que provocada a questão por mim. Chegara o fim do dia, após uma visita a um sítio, em tudo glamuroso, com direito a um jantar supimpa. No bar dos serões, aportaram farmacêutico e amigos (agora um grupo maior). A conversa já delongava em cotidianos, quando anunciei:
– “Amigos, antes que alguém se vá, quero dizer de minha gratidão a todos, pois fui regiamente recebido; porém, logo cedo seguirei o meu rumo”.
– “Mas o amigo sabe seguir em frente?”, perguntou-me “seu” Flavio, menos surpreso que duvidoso.
– “Penso não ser difícil. Volto pela trilha do descampado e retomo a estrada. Ou haveria caminho melhor?”.
– “Aquela trilha não existe mais. O que você chama de descampado é uma floresta onde ninguém se atreve a entrar”.
– “Como assim? Ontem eu passei por lá... Não era nada disso”.
– “Antes de você, muitos dos que hoje vivem em Custódia chegaram daquelas bandas, contando a mesma história – você não é o primeiro…”, arrematou o meu hospedeiro.
– “Que resposta mais doida!”, reclamei. “O amigo está-me dizendo que o caminho pelo qual cheguei ontem, e que ainda deve ter as minhas pegadas, não existe, ou melhor, não existiria?”
– “Sim, isso mesmo. Aliás, existiu durante a sua passagem, ou seja, só existe quando alguém que chegue o descubra e se embrenhe por ele – é virtual. Contudo, não oferece retorno algum”. “Seu” Flávio adotara um tom de voz magistral.
– “Bem, se vocês usam fazer uma grande piada nas despedidas, vocês conseguiram. Já passei da idade dos contos-de-fadas. Vou levar essa como suvenir de Custódia”.
– “Amanhã você me diz!”. Naquele instante, o farmacêutico ostentava um ar solene, eclipsando o enigmático e o desafiador; tomou o trago final e se levantou, dando a entender aos amigos que aquele dia estava encerrado.
Foi uma noite mal dormida, de pensamentos recorrentes, pois a intuição sempre sombreia a razão. É, parece que estranhezas se aglutinaram: aquele súbito atalho, aquela vila com forte sabor de singularidade, ao mesmo tempo que tão incomum em sua familiaridade; agora esse estapafúrdio mistério de não me deixar sair fazendo o retorno.
Manhã rosicler, café forte, gostoso, tomado sem questionamentos, mochila feita, conta paga, despedidas e agradecimentos, pés na rua. Umas dez quadras me conduziram ao final da vila, ou melhor, ao justo ponto por onde eu nela entrara – tudo conforme as lembranças da chegada. Revi a senhora que me explicara não haver ali pousadas ou pensões, mas que o dono da farmácia costumava dar pouso a eventuais forasteiros, e me indicara o caminho de sua botica; também reencontrei o garoto que me dissera o nome do lugarejo.
Logo após a última (ou primeira) casa da rua, havia quatro chácaras, não notadas na chegada, e, ocupando todo o adiante, mato, mato fechado, mata, floresta sem qualquer brecha, sem qualquer chance.
– “Moço, você vai lá?”, perguntou o garoto maior de um pequeno grupo a brincar, vendo-me assim, caminhante, mochila nas costas, olhando para a mata, ele com leve tom de incredulidade ou de mofa. Fiquei desconcertado – com um ar parvo, por certo.
– “Onde fica a estrada, a saída?”
– “Aqui não tem saída, não, moço; só essa mata gigante, perigosa. Ninguém entra aí. Ela é de se perder”. Pareceu mais sério, zeloso.
Agradeci ao garoto e fiz meia-volta, perplexo, sem cogitar seguir com a busca, pois não se viam as extremidades da floresta; ali estava traçada a fronteira de dois mundos distintos: Custódia–mata inóspita, em um corte justo de alfaiate. De regresso pela rua das casas, aquela sensação do já visto, dois dias antes. Retornei à farmácia.
Detive-me diante da botica, onde “seu” Flavio estava sozinho, dando uma ordem no balcão. Ninguém falou nada, mas ele me encarava, cabisbaixo, esperando a primeira pergunta. Após mais de minuto, entrei, depositei a mochila, sentei-me no banco dos fregueses, pensativo, igualmente cabisbaixo. Por fim, soltei o jorro de inquietações:
– “Acreditar que aquele descampado não esteja lá é o mesmo que acreditar que eu nunca tenha existido, que eu sou um sonho ambulante”.  Minhas palavras me soaram dramáticas, mas eu vivia um drama, de fato. “Eu tenho um punhado de mistérios para solucionar e um problema prático para resolver”.
Ele seguia silencioso e cabisbaixo; cabisbaixo e silencioso.
– “Bom, qual é o caminho que me leva daqui? Para onde vai?”, já denotando impaciência.
– “Não é tão simples assim...”, com um laivo de compaixão.
– “Como? Vocês têm uma ou mais saídas daqui, é obvio. Por onde eu saio? Quando chegar ao meu destino, vou ocupar-me dos mistérios”.
– “É melhor começar pelos mistérios!”, num tom igualmente misterioso.
– “Vocês estão de sacanagem comigo, ‘seu’ Flávio!”.
– “Como assim?”, debruçando-se no balcão, em minha direção, e agora com ar de quem não gostou. “O amigo arruma confusão e nós somos os sacanas?”
– “Eu busco respostas objetivas, soluções praticas, e não enigmas”.
– “Entendo. Nós, também. Por que o amigo acha que temos as suas respostas?”, voltando a seu habitual fleumático. “Por acaso o amigo percebeu que temos rádio e televisão, que nos põem a par do mundo, mas que não temos jornais e que nem mesmo correspondência recebemos? O amigo viu algum carro de fora, alguma jardineira de local vizinho? Então vamos ao primeiro grande fato: algumas pessoas entram aqui, raramente; porém, alguém sair daqui é outra questão, bem mais complexa, ainda que nada impossível.”
– “Há regras para a saída ou estou prisioneiro de vocês?”.
– “De nós? Entenda bem uma coisa: nós não somos parte da causa, somos parte da consequência. Ninguém iria querer tê-lo aqui como prisioneiro. Para quê?”.
– “O senhor quer dizer que devo procurar a minha própria solução e me safar?”.
– “Não é bem isso. Podemos ajudá-lo, sim. Quero dizer, expor mais algumas regras, no seu dizer, ou leis que determinam os fatos, no nosso”. Ele retomara o tom amistoso, parecendo acessível, mas ainda longe de uma clareza pragmática.
– “Então vamos lá! O que mais falta saber e fazer?”.
– “Vamos, sim, a dois fatos básicos. Primeiro, Custódia é uma vila antiga; dizem que fundada por um grupo de jesuítas que se recusaram a ser banidos, na época da expulsão, e formaram aqui uma herdade dissimulada, imperceptível; eles trabalharam, subsistiram, construíram as suas moradas. A esse grupo inicial, somente homens, vieram juntar-se outros interessados, agora incluindo mulheres; formaram-se famílias, que aqui se assentaram; crianças nasceram – essas pessoas são as nossas raízes e os chamamos de antepassados; os descendentes atuais chamamos de nativos. Segundo, muitos aqui chegaram como você, sempre dizendo ter sido por um caminho virtual (não no sentido cibernético, mas que tinha as propriedades de tal, sem ser real), e a esses chamamos de forasteiros; mas esses tiveram a opção de aqui ficar, como tantos ficaram, empreendendo o seu trabalho e se integrando a nosso cotidiano, a ponto de se casarem e terem os seus filhos – àqueles forasteiros chamamos de naturalizados. Como se deu? A lenda mais autorizada diz que foi armação dos jesuítas, para proteger a sua gente”.
Se Custódia não conhecia carrossel, agora teve a vez, bem aqui em minha cabeça. Santa Glória da Luz Divina! Isso foi demais.
­­– “Tantos ficaram, então; não por o querer. Será essa a minha sina?”
– “Ai, rapaz, tenha paciência, um pouco! Vamos avaliar as suas chances, vamos considerar que haja uma opção de sair”. Ele parecia agora querer socorrer-me, como a tantos deve ser socorrido com as suas infusões e outras panaceias.
– “O senhor diz opção, o que significa haver uma opção de sair daqui – logo, há saídas, que é o que me interessa.”.
– “Calma! Não é tão simples assim, repito. De todos os que se foram, não sabemos o seu desfecho, se chegaram a seu destino, se é que chegaram.”.
– “Ok, ok! Mas saíram. E por onde é que se sai?”
– “A rigor, há duas vias, ou maneiras, distintas: para os nativos, uma coisa; para os forasteiros, outra coisa.”
– “Ah, mais essa, agora!” – eu já me via furibundo. “Que vias são essas, meu amigo? Eu, eu, no meu caso, o que devo fazer para ir-me daqui?”.
– “Preciso expor-lhe isso com vagar, caso contrário você não o entenderá.”.
Preferi não retrucar, para não alimentar essa insânia ou vesânia, sei lá, mas em vias de se tornar cizânia.
– “Nós, os nativos, fomos adquirindo a capacidade de enxergar um caminho, onde não há caminho, que nos permite ir e vir, mas não a qualquer instante, apenas nos equinócios. Isso nos permite sairmos, buscarmos as cidades grandes e, digamos, reais, que não ficam longe daqui. Praticamente todos nós já fizemos isso, até mais de uma vez. Aliás, os nossos comerciantes são useiros do recurso, pois precisam abastecer os seus estoques, trazer-nos as coisas que não poderíamos produzir aqui – temos até importados, hoje em dia ‘made in China’. No meu caso, eu saí para estudar, fazer a minha graduação em Farmácia.”
– “E por que voltou?”, não resisti.
– “Faz parte dessa nossa lei, um pacto sem o qual não se sai. Também Padre Gileno foi ordenar-se sacerdote lá fora, onde ficou mais de doze anos, tendo voltado, é óbvio. E assim se deu com tantos outros”.
– “Nunca houve um desertor, alguém que não voltasse?”
– “Houve, no passado, quando a lei se estabeleceu. Mas as gerações seguintes entenderam que o preço era penoso demais, de modo que, hoje em dia, ninguém mais ousa descumprir o pacto”.
– “O que acontece ao eventual desertor?”.
– “Isso eu não posso revelar-lhe; não a um forasteiro.”, assumindo um ar circunspecto.
– “Vocês vão atrás e o punem pelo destrato? Trazem-no de volta, na marra?”
Essa minha alfinetada custou uns dois minutos de silêncio, quando eu vi em seu semblante os penhascos da alma humana. Logo após, ele se retirou, não sem antes balbuciar um “Licença!”, voltando em três minutos; pensei que ele houvera telefonado; não estava menos tenso, mas demonstrava querer seguir adiante com a exposição, ainda que com feição agora mais que circunspecta, facilmente traduzível em “que não se repita!”. Fui eu quem retomou o diálogo, caprichando em um tom respeitoso.
– “Entendi que tal regra não se aplica aos forasteiros – esses podem sair sem firmar o pacto, o que não os obriga ao retorno.”.
– “Sim. Mas não pelo mesmo caminho. Eles nem precisam esperar pelo equinócio.”.
– “Que bom!”, esforçando-me por não denotar sarcasmo – o tal equinócio demoraria.
– “É melhor eu ser sucinto doravante. Para os forasteiros, não há o pacto, porém a saída implica um possível risco, que nós não podemos estimar qual seja, pois ela não nos é conhecida e ninguém voltou para o dizer. Esse outro caminho parte daqui e nos conduz até próximo de uma montanha denominada ‘Somos’ – isso mesmo, é um palíndromo. Nós apenas conhecemos até tal ponto. Adiante é como se fosse uma outra dimensão, nem mágica, nem mística, nem misteriosa – somente desconhecida. Nenhum de nós, em tempos atuais, ousou conhecer além.”.
– “Por quê?”.
– “Já que o amigo está tão afoito para ir-se de vez, é melhor se inteirar com os próprios olhos.”.
– “E como faço para chegar até lá? Que rumo devo tomar?”.
– “Podemos guiá-lo até o ponto crítico – não nos custa. Todavia, dali para frente o amigo terá que seguir sozinho, por sua conta e risco, após haver feito a escolha. Dizem que há um momento na jornada do herói em que os deuses se afastam e o deixam na maior solidão, no maior desamparo – é a prova máxima das virtudes do herói, não contar com a proteção dos deuses, senão com os próprios recursos.”
– “O senhor disse ‘…após haver feito a escolha’. O que é isso?”
– “Lá chegando, ficará bem claro o dilema. Espere e veja.”.
– “Quando poderemos partir, já que não dependo do equinócio?”
– “Não haverá tardança, mas convém estar lá antes de o sol raiar, para você poder vislumbrar toda a beleza – fará bem a seu espírito aventureiro. Partiremos duas horas antes do amanhecer. Volte a pernoitar em casa, que eu o chamarei bem a tempo para um desjejum substancioso – você precisará de bastantes energias.”.
– “De acordo. E, desde já, eternamente grato.”.
– “Lembre-se: não lhe dei garantia alguma,”.
–– III ––
Retomei as minhas acomodações na casa do farmacêutico e fiz andanças pela vila, dessa feita sondando outros arredores; a maioria descortinava uma paisagem em planície (ou planalto?), mas sem vislumbre de chegar a algures – desertos campestres dentro de desertos existenciais, sem tramas ou trilhas. Conversei com jovens de aparência inteligente, tentando sondar o meu devir, mas apenas encontrei respostas corteses e evasivas.
De fato, bem chamativa, havia uma estrada rumo Leste e que parecia culminar em um contraforte rochoso; mas era uma estrada idêntica a qualquer estrada, sem mistérios aparentes, sem curvas ao alcance dos olhos; cara de estrada de ferro sem trilhos. Ela parecia dizer: “É lá, sem titubeios”. Por todas as graças, não me precipitei.
Recomendado, recolhi-me para um sono mais cedo, ainda que me esperasse outra noite de inquietudes e voluteios na cama. Em meio à madrugada, “seu” Flávio veio chamar-me – recomendou-me, mais uma vez, agasalhos. Houve o generoso desjejum. À porta da casa, um pequeno grupo de cavaleiros nos aguardava, retendo duas montarias para os protagonistas. Saímos e rumamos para a já sabida estrada, caminhando em silêncio, mal clareados pela lua gentil – não pude escapar à sensação de um cortejo fúnebre, todavia.
Após duas horas de caminhada, “seu” Flávio deu o sinal de parar e de apear. Sentamo-nos na relva – o único olhar expectante era o meu. Porém, não houve delonga. Em menos de meia hora apresentou-se Sua Majestade, a Aurora. Veio com seu manto púrpura, logo tornado rosicler. Aos poucos, o entorno foi-se revelando. Estávamos a cerca de meia légua de um bloco de montes escarpados e pedregosos; contudo, um deles, o mais alto, exibia a silhueta de um vulcão mais afilado, altivo, com o seu topo truncado – uma plataforma, por certo. Porém, o conjunto pareceu-me absolutamente intransponível – nem a estrada se aventurava naquela direção...
À medida que o arrebol assumia nuances mais douradas, percebia-se que o sol nasceria bem por trás do monte mais alto. Era perceptível que tal monte eclipsava a entidade sol-levante; mas a altura daquele tinha o seu limite e, logo mais, o astro-rei estaria acima de todas as coisas terrenas. Contudo, antes que tal se desse, eu vi o cenário mais lindo de minha vida.
O monte vulcânico agora parecia um busto envolto por um manto, com a cabeça ornada por uma coroa; e o sol, eclipsado exatamente por trás, lançava seus raios como um portentoso resplendor, insinuando uma mescla de régio e de divino. No meio do êxtase e vindas da alma, as notas estridentes de uma fanfarra ubíqua, ouvida meramente pela emotividade. Quando o semicírculo do sol já se fazia patente ao topo, eu supus a imagem dadivosa de um Graal, tornado novamente prestes a nós.
Foi “seu” Flávio quem rompeu o silêncio lúgubre que se instalara:
– “Aí está, bem a sua frente, o Somos, esse aglomerado de elevações. Meu amigo, eis a minha última explicação, antes que eu o deixe ir-se. Passados o êxtase e a natural ofuscação, observe que a estrada, ali adiante, se bifurca; cada ramo assume um contorno daquele bloco de montes. Você já deve ter-se dado conta de que não poderá cruzar pelo meio, pois intransponível. Agora torna-se clara a escolha que terá que fazer. O ramo sul se chama “Solstício de Inverno”; o norte, “Solstício de Verão”. Distinto do que poderia esperar, você também terá os seus solstícios, ainda que metafóricos – resta escolher um. Os nomes se justificam: até o ponto que é de nosso conhecimento, o caminho que sai para o Sul, contornando o Somos, conduz a planícies cada vez mais frias, mas frias mesmo, de uma frigidez insuspeita – em tudo, elas se parecem com estepes e é provável que você encontre neve. Não sabemos se ali você se deparará com qualquer animal, uma ave que seja; talvez, se houver água líquida, algum peixe. Esteja preparado para a solidão impiedosa. Por sua vez, o caminho que contorna pelo Norte vai levá-lo a desertos infernais de quentes; um calor crescente, que não se imagina daqui. Suponho, meramente suponho, que a região seja árida, mas você poderá encontrar uma serpente ou um lagarto para lhe fazer companhia. Caso seja a sua opção, esteja preparado para o desespero.”. Ele, de todo, não parecia ignorar os paradeiros, contrariando a antes anunciada ignorância.
Após explanação tão lacônica e dramática, se deram as despedidas, em clima mais que cordial, com profundos e sinceros desejos de “boa sorte!”. Em razão de minha índole tropical, escolhi o rumo Norte.
Légua é mais ou menos a distância que um adulto hígido percorre durante uma hora, em passo rápido e em piso plano e regular. Pois bem, durante cerca de duas horas os meus companheiros e a sua vila hospedeira foram os pensamentos e lembranças daquele povo insólito que eu abandonara. Isso me distraiu e não me deixou perceber com presteza que, à medida que eu andava, o solo de vegetação rasteira dava lugar a um chão mais batido, agreste, seco; da mesma forma, a temperatura se elevava, acompanhando a subida do sol. Ao meio-dia, o solo sob os meus pés me lembrava o terreno do Grand Canyon, no Arizona, e a temperatura disputava com a do Saara. Se fosse dado a um sertanejo, este chamaria o local de agreste do agreste do agreste. Nenhum animal de porte maior que pequeninos lagartos, além de não grande variedade de artrópodos, incluindo as formigas, esses olheiros de Deus, poderiam ser vistos por ali. Eu, com minha mochila, destoava feio na paisagem. Raramente eu via água, não potável, de regra – agradeci intimamente ao amigo que me dera o oportuníssimo cantil, agora com água morna.
Convém esclarecer que a região toda alcançada pelo perder de vista era um altiplano, onde a elevação rochosa era uma fortaleza oblonga contrastante, alinhada de norte a sul. Desse modo, o caminho que eu fazia traçara um quadrante de elipse e eu me encontrava agora na extremidade norte daquele bloco. Digo caminho, mas nessa altura não mais havia estrada, trilha ou qualquer vestígio deixado por caminhante humano – o chão era virgem e eu me guiava pelo intuito de contornar o monobloco por seu flanco norte. Contudo, chegado a esse extremo da circundação, havia a opção de seguir contornando o pequeno maciço, tomando rumo oriente-sul, ou afastar-me daquela elevação, seguindo rumo norte.
Embora a opção do contorno assomasse sem sentido, a paisagem norte era absolutamente árida; tão mais árida que o ponto onde eu me achava que a intuição desaconselhava de pronto seguir para lá. Havia um segundo argumento: neste local no mundo, quem caminha para oriente caminha ao encontro do mar e quem busca o mar não deixou de todo a sua esperança de sobrevivência: o oceano é o pai de todas as rotas no planeta.
Nessa hora, sol a pino, a fome era pantagruélica – que saudades das generosas quitandas de Da. Rosinha. Então, com a sensação de estar pisando solo lunar, tamanha a desolação, eu começava a cogitar a sucumbência. Os pés latejavam de tão fritos; o suor começava a escassear, pois visivelmente eu me desidratara. Esta vastidão cruel negava-me qualquer chance de abrigo – nem mesmo uma rocha de porte para fazer-me sombra e encosto. Já atordoado, eu desfaleceria ali, rumo ao esmorecimento fatal.
Não obstante, segui caminhando por meu contorno. Os dilemas internalizados atrapalham a percepção das acontecências alvissareiros. Eu não me apercebera até aquele instante, mas começavam a surgir laivos de nuvens, aqueles flocos de algodão celeste de tantas salvações epopeicas. Em menos de meia hora o céu estava bem turvado, a ponto de amainar o sol, e, em quinze minutos, caiu o primeiro pingo d’água.
Foi uma chuva honesta, vigorosa, amiga, sem a raiva dos trovões ou o embaraço das ventanias – uma queda de água absolutamente vertical. Água para beber, para refrescar tudo, para mudar um todo. Lembrou-me Jobim: “Águas de março fechando o verão, promessa de vida em teu coração”. A despeito da chuva, segui a minha marcha e, quando parou de chover, a paisagem era notoriamente outra. Havia verde.
Mais, havia campos atapetados por grama; havia aves voando, a piar; havia árvores, inclusive frutíferas, com a sua oferenda substanciosa e adocicada. Um bando de arara sonoras chegou a assustar-me, não mais que um guaxinim que cruzou correndo o meu caminho – “Ei, esse bicho vive perto de águas grandes!”. Nutrido, eu agora caminhava triunfante, ao encontro de algo com razão de ser.
A despeito do cansaço, não me detive até chegar a um ponto médio do contorno do contraforte, como se posição sequente e alterna à bifurcação, quando vim da vila O topo do meu Graal agora estava bem a minha direita. Dei uma guinada de ângulo reto, tomando então a direção do Oriente. Se eu vi uma aridez dos infernos, na curva mais setentrional do contorno, agora eu tinha a visão do Paraíso – se restara algo do Éden, seria aqui. Eu estava em meio a uma floresta suave, de árvores altas e espaçadas, de copas frondosas, sem enrosco de matagal, o sol filtrado jorrando os seus raios suavizados no solo de gramíneas, numa ambiência de temperatura bem mais amena, posto que ainda tropical.
Aconteceu! A certa altura avistei o oceano, turquesa que se curva no horizonte. Caminhei mais célere. Todavia, uma surpresa inamistosa me aguardava, eis que o ponto final da caminhada era o topo de um promontório – não havia como descer, ainda que o mar me acenasse com as suas ondas a se quebrarem nas rochas e me chamasse com o seu rujo perene.
Ademais, qual seria o sentido de arriscar uma descida intimorata? A expectativa não era de portos ou de barcos ou de caiçaras amigáveis – apenas o oceano infinito, testemunha de tantos naufrágios, de tantas desventuras.
A floresta acolhedora ganhava esse extremo. Alimentei-me mais e resolvi repousar e aguardar até o amanhecer para uma tomada de decisão. Tentei adormecer e consegui, ainda que a mente não escapasse ao vórtice especulativo.
Pela manhã, estava claro o que fazer: voltei ao ponto onde eu dera a guinada e retomei o rumo sul, ousando o que me reservava o encontro com um universo gélido. Quando a circunstância de vida tange o absurdo, não é absurda a opção pela solução que tende ao absurdo. Assim fazendo, pus-me a caminho; a floresta amiga me acompanhava, sem descenso na temperatura, como eu supusera.
Não precisei caminhar mais que uma hora até encontrar, surpresa das surpresas, uma estrada de terra, mas bem aplanada e em meio ao arboreto. Agora o absurdo seria não seguir por ela, embora não soubesse aonde chegaria; apenas era mister escolher se direita, se esquerda. Insisti no rumo oriental, que me vinha latejando desde o início, como sã intuição, e retomei a jornada.
Curiosamente, a feição da vegetação se alterou – um repente transformou mito em mato, ou melhor, em mata tropical, quase impenetrável. Mas eu segui, sem empecilhos, pela estrada. Nem foram necessários tantos passos – logo adiante encontrei uma placa tosca, indicando em boas letras: “PORTO SEGURO – A 10 km”.
30/10/2016