Posso ter não satisfação

Quando ligou o rádio do carro, estava tocando "Satisfação", versão de Gilberto Gil, e ele lembrou automaticamente de Ondina. Devia ter sido há mais de vinte anos, no carnaval da Bahia, e ele não tinha a menor ideia de qual teria sido o destino da bela mulata soteropolitana. O caso, típico romance de folia, fora breve e acontecera antes da explosão dos celulares e redes sociais; perderam o contato na quarta-feira de cinzas, e tudo o que restara fora o refrão da música: "posso ter não satisfação".

"Engraçado", pensou dirigindo a caminho do trabalho, "uma letra tão simples, e talvez por isso mesmo, tão evocativa". Ondina fora a realização que a música não prometia, a satisfação negada na música original dos Rolling Stones; uma satisfação que não dependia de anúncios de cigarros ou de cerveja, e se concretizava pulando atrás de um trio elétrico pelas avenidas entupidas de gente de Salvador.

"Volte na próxima semana", ela havia dito. Mas ele nunca mais voltara, e agora tudo o que restara de Ondina e daquele carnaval, era essa velha música que remetia a outra música, ainda mais velha, e que falava de um homem que dirigia seu carro ouvindo informações inúteis.

Coincidentemente, após "Satisfação" terminar, ouviu pelo rádio que a temperatura ao longo do dia poderia chegar a 34 ºC. Era uma informação perfeitamente inútil para quem, como ele, trafegava com o ar condicionado do carro ligado, e após passar o dia inteiro num escritório climatizado, à noite encontraria a mesma temperatura reduzida em casa.

Pensou em como seria bom ter Ondina de volta, para quebrar aquela bolha de gelo que o envolvia. Talvez devesse voltar à Bahia... e no tempo. Voltar a ser jovem, com 20 anos, e pular atrás do trio elétrico...

Ondina estaria lá, num remanso da memória, esperando por ele.

- [04-09-2019]