"ALOGIA" (O conto do Bode Sábio)
“você queria escrever de grandes acontecimentos, grandes desastres e seres HORRÍVEIS? Eu prefiro quando você fala de mosquitos rodeando sua cabeça por causa do sol excessivo, e quando fala de toda essa gente chata que todo mundo conhece, sei lá... Uma vez ou duas - talvez bem mais - por semana, sabe?”. – Disse o Bode.
As caixas de som espalhadas nos postes da praça oscilavam por mau contato, e o cheiro do café da lanchonete ao lado, misturava-se com xixi dos gatos a água de uma chuva que nem tinha caído ainda...
“Ele” tentava não se mexer muito, pois sabia que o que falava com ele, naquele fim de tarde quente... Era uma alucinação. Um bode cinza, vestindo um suéter azul com uma pequena estrelinha branca no peito (que diabos isso queria dizer?). Mas, como sabia que tudo aquilo não podia ser verdade, manteve-se ereto, tentando se distrair com um jogo de batalha de minhocas no celular que, definitivamente NÃO ESTAVA AJUDANDO MUITO. O bode continuou falando...
“E todo esse lance de "cara solitário", é PRA QUÊ mesmo? Quer dizer, na juventude tinha um sentido... agora, você não tem mais 20 anos... Sem querer julgar, mas... Você está tentando provar alguma coisa, ainda? Ou não consegue mais “deligar” o modo Darth Vader??”.
“Ele” acabou olhando para o lado de uma vez, encarando o bode nos olhos. Não pôde suportar a provocação gratuita...
- Eiii. Cara, eu não estou sozinho porque quero! E eu nem te chamei aqui. Se eu quisesse um psicólogo, eu PAGAVA por um. Saii... Sai! Bode feio! Mau! Xô!
“A gente sabe que você não pode pagar psicólogo nenhum, garoto... É por isso que escreve tanto... - ele completou, dando uma cruzadinha de pernas - Você só tem a MIM. E na verdade NEM A MIM você tem... Porque eu não sou de verdade. Você andou comendo alguma coisa estragada, talvez. Vai saber quanto tempo eu vou durar nessa tua cabeça...”
- Você é só uma coisa em minha cabeça. MAIS UMA. “Coisa”, pra TENTAR me deixar com a autoestima baixa. Só isso. É como se fosse uma mistura de minha família, com todos os professores da escola, falsos amigos, subempregos... E todo esse mundo de gente de sorriso maroto que aparece e some de minha vida, todos os dias. Eles chegam... Abraçam... Perguntam de você, como se importasse, mas é apenas a tentativa de "identificação do problema", para poder rebater com uma "SOLUÇÃO". E então saírem felizes da vida... Eu não preciso de um maldito "Bode Gaiato" pra me informar essas coisas, meu caro.
O Bode sorriu, e “Ele” nem sabia ao certo que bodes podiam sorrir largamente daquele jeito. No fundo se sentia bem perto ele... Pessoas passavam na rua, olhando... Com certeza o que viam era um cara falando sozinho, mesmo que baixo, e discutindo sobre sua autoestima (ou a falta dela) e sobre sua solidão com um banco vazio.
- O que eu faço Bode?
“Não sei... O que resta a seguir? Eu não sei.”
- É... – “Ele” tinha lágrimas nos olhos. O sol estava forte, seus olhos doíam e ele pôs um ray-ban na cara.
“BEM, MEU AMIGO... Se quiser, eu RETORNO na "próxima sessão", e conversaremos sobre tudo isso, ok?”
- EEIII!! Que CACETE DE PRÓXIMA SESSÃO, ZORRA nenhuma! Isso só atestaria de que EU ENLOUQUECI...
O bode se espreguiçou, esfregando o bumbum com uma espécie de rebolado no banco da praça. Tirou de uma bolsinha - que “Ele” teve certeza absoluta que há alguns segundos não existia - um óculos Ray-ban igualzinho ao dele. Deu um suspiro que fingia um ar filosófico, mas cheirava à pura vaidade e charlatanismo.
“Todo mundo é louco... Meu amigo. Os bodes?! Bem... esses não são... E nem serão.”
- Humanos... Você quer dizer... Humanos são os malucos...?
“Claro! E gatos e cachorros também. Mas, geralmente eles são loucos por culpa dos humanos. Vocês enlouqueceram os gatos e cachorros!!
"esse bode é completamente pirado", “Ele” pensou.
Mas a verdade é que era “ELE” quem estava sentado num banco de praça no maior calor, sem a menor opção de companhia... Olhando em torno de sua própria vida - passado, presente, futuro... - e não conseguindo chegar num bendito denominador comum. Era “ELE”. E não aquele bode, ou nenhum outro de sua raça.
- Então, em resumo; Cachorros?!
- Estúpidos e instáveis.
- Gatos?!
- Megalomaníacos e manipuladores... Nada confiáveis.
- Humanos?!
- Piores dos Piores. Melhor tentar dialogar com um beija-flor...
Permaneceram sentados sem dizer palavra por quase mais uma hora... O sol se tornou brando como um abraço quente de uma criança querida (ou uma vovó...). Cada minuto que se passava, “Ele” se sentia melhor... E pior... Sobre si mesmo... Uma coisa incrível, triste, libertadora, e também aterrorizante... Tudo ao mesmo tempo.
O bode apenas se mantinha ali, parado e sorrindo. Curtindo os últimos raios de sol e se gabando de toda sua Sabedoria Secular e Superior...