Diversas identidades: a nóia de Samuca

As lágrimas existiam, não caia uma gota sequer, chorar era uma forma de demonstração de fraqueza, e era imperdoável um homem voltar a ser menino, criança desamparada. Certa noite sonhou com cachorro, gato, tartaruga, periquito. Sonhou com uma senhora de avental xadrez branco e preto, fazendo doce de banana, o cheiro da banana na panela exalava pela casa, não conseguia desnudar a visão embaçada do rosto daquela senhora que aparentava ter um corpo de uma mulher de quase setenta anos, apenas conseguia se maravilhar com o timbre do cantarolar conforme os movimentos cíclicos do taxo eram constantemente executados, além do mais, era possível catalogar cada detalhe da cozinha: os temperos, os azulejos, as panelas, até mesmo os detalhes mais discretos, como o persistente mofo entre a divisa da quina da parede com o teto.

- Goooolll do Santos, é ele Paulo Henrique Ganso!!

Acordou no balcão do bar, e o narrador persistia na exaltação do orgasmo múltiplo.

- Um golaço, uma verdadeira obra prima, gol de craque, gol de gênio.

O comentarista endossava:

- Esse vai ser o futuro camisa 10 da seleção brasileira, maestro! Ninguém arma as jogadas como o Ganso.

Voltou a dormir sentado com a testa encostada no balcão do bar, mas aquele sonho aconchegante foi apenas um pedacinho de ilusão, daquelas sádicas que não voltam pelo sincero desejo. O rabo de galo persistia em ficar pela metade, assim como sua presença persistia no bar do Betão, mas até mesmo o carismático Betão estava de saco cheio com a presença do seu último freguês, uma hora depois do jogo entre Santos e Grêmio.

- Ei Samuca, tô fechando, acorda porra! Já deu fii, amanhã é outro dia.

Cambaleou pelas ruas, na real estava mais chapado de sono do quê bêbado, e atravessando a faixa de pedestre enquanto o sinal verde não abria para os protagonistas da rua, despencou a chorar. Sentia um misto de melancolia e felicidade moribunda, se sentia no ápice da vida e ao mesmo tempo se sentia podre, envergonhado, na verdade estava no pico do conflito e não entendia merda alguma, como se sentisse na bad trip de um doce ou como se estivesse entrando em transe como num ritual de ayahuasca, era um sentimento profundamente maniqueísta, a contrapartida de uma vida fugazmente hedonista, mesclado com o afeto de construir uma família, o mundo se dividia em apenas duas faces embaralhadas, e infantilmente aquele quase idoso queria que tudo se resolvesse pela aposta, uma resolução através do pôquer, ou quem sabe um mero jogo de bilhar. Não havia tempo para o instinto perante o domínio da rasteira loucura de se confrontar violentamente, é uma teia de areia grudenta que brinca com suas forças, contra os raros respingos de lucidez,

- Não estou morrendo por dentro, estou morrendo por pensamento. Porra, não é a mesma coisa?

Samuca indagava a si mesmo com uma réplica em tom de desabafo:

- Cara, é muito relativo, depende de como você encara os fatos. Mano, que fatos? São flashes, vozes, barulho de nozes, visões de bolas na rede, de trepadas, cheiros de comidas com conversas absurdas, ora cabeludas, de vez em quando carinhosas, é o mundo que vivenciei, é um mundo que tenho quase certeza que não experimentei, é o purgatório de frases que sempre almejei resgatar, mas nunca tive coragem, daí tais frases perderam seu timing e ficaram presas no purgatório da rememória.

- Larga a mão de ser nóia, bola pra frente trutinha, afinal você sempre escolheu assim, você tem prazer com o fio da navalha, só aceita, ame tudo, faça tudo, a vida e o mundo é um só trágico cordão umbilical.

- Cara, só quero ir pra casa e devorar o resto de pizza, só permita que meu estômago aprecie o tal da porra do respingo de felicidade imediata. Caralho, meu, é muito blábláblá.

Venceu todas as vozes que vomitavam em sua cabeça antes de se perder no molho de chaves que abria o portão azul da casa. Conseguiu se acomodar confortavelmente na poltrona verde musgo, estofado de sofás e poltronas que prevalecia na maioria dos lares brasileiros dos anos oitenta e noventa. Acendeu um cigarro, relaxou, esqueceu do resto da pizza por cerca de meia hora, e lembrou:

- Minha filha já tem quase trinta anos, ou será que já tem? Será que ela terminou o curso de Engenharia? Ou será que o curso é de Filosofia? Na faixa dos sete anos achei que seria bióloga, nunca vi gostar de insetos, de brincar com os bichos daquela maneira, mas na adolescência se afastou disso tudo, ela ficou fissurada no ator de Titanic, como era mesmo o nome daquele loirinho magricela? Dicaprio!! Ela colecionava tudo dele, pastas e mais pastas de fotos. Acho esse ator foda, tipo um Marlon Brando dessa ERA, talvez esteja exagerando, sei lá, foda-se, só gosto de ver o cara atuar, mas me sentia com ciúmes da Lana, minha princesinha. Será que ela tem 28? Sim, ela se formou em Química, mas não exerce a profissão.

Comeu o pedaço de pizza sem esquentar, mesmo com aquela mozzarella borrachuda, mesmo sentindo a frieza da calabresa, optando mais na direção da necessidade e desencanando das últimas marcas de prazer que restariam naquele pedaço de pizza se fosse esquentado por míseros 30 segundos no micro-ondas. Como a barriga cheia, logo pegou no sono, mas não sabia se tinha dormido ou despertado, não importava em qual mundo estava, nunca se apegou a nada transcendental, nem tinha curiosidade em pesquisar algo transcendental, ou as fases psíquicas do sono, só estava focado naquele feixe de luz, na qual se destaca o vermelho se sobrepondo ao preto.

Aquela luz chamava a atenção de Samuel, ele estava com o olhar focado, seguindo cada movimento brusco ou lento, independente da direção. Porém, aos poucos o feixe de luz foi se materializando no formato de um corpo humano. Aos poucos as cores vermelho e preto descortinaram um rosto bem conhecido, um rosto que a memória precisava exercitar rapidamente. Milhões de sensações do passado percorreram a mente de Samuel, em milésimos de segundos vieram a tona inúmeras memórias, fictícias ou não, mas no segundo seguinte já não lembrava de absolutamente nada, apenas uma lembrança, ou melhor, apenas um rosto fixou em sua mente.

- Lana?!? É você? O papai vai te levar no carrossel, fica tranquila, agora está tudo bem. Eu sei queria ter conhecido sua universidade, você gostou tanto que até arrumou um trampo de docente por lá não é mesmo?!? Eu sei, Vô parar de fumar! Não traga mais esse tranqueira aqui pra casa mocinha!! Desculpe por ter sido um pai ausente, por ter abandonado vocês duas, papai se apaixonou, pode acontecer com qualquer um, minha secretaria tinha quase metade de sua mãe, você gostava dela, era como se ela fosse sua irmã mais velha, fomos morar no interior do Paraná, até ela gastar todo meu dinheiro e sumir sem deixar rastro. Nunca imaginei que você se tornaria uma puta, me desculpe, me perdoe, suma daqui deixe eu criar a minha própria estória do passado, do nosso passado.

Samuel estava perplexo e assustado. A aquela luz no formato de um corpo humano, só mudava de cor na parte do rosto, a cor do rosto era ocultada pelo vermelho e preto a cada cinco segundos, e quando o vermelho e preto era descortinado novamente aparecia o mesmo rosto em alguma fase diferente da vida, a cada dez segundos era o mesmo rosto numa outra faixa etária.

- Será que eu morri? Será que estou ficando maluco? Deve ser culpa daquela pizza borrachuda.

Mal terminou a última frase e a temperatura do ambiente caiu bruscamente, ele estava na sala de sua antiga casa, reconheceu o local por causa da televisão Telefunken e ao lado um porta-retratos com uma foto sua, da Lana recém-nascida e de sua ex-mulher. A forma do feixe de luz perdeu o contraste do vermelho e preto e ficou estática, praticamente congelada, ficou cinza-gelo, não havia mais a troca da mesma identidade em fases diferentes da vida, a dinâmica foi substituída pelo rosto da Lana criança.

O rosto identificado por Samuel era de um dia específico, foi o dia que ela tinha ido à festa junina da escolinha primária quando tinha seus cinco aninhos. Lana olhava para o horizonte com o olhar fixo, a temperatura devia estar negativa nesse momento, Samuel tinha dificuldades para tragar o ar, o rosto de Lana ganhava temperatura, a tonalidade moribunda da pele de Lana era substituída por um tom de pele de uma criança saudável e feliz, logo após a metamorfose Lana proferiu as seguintes palavras:

- É a sensação de nascer e morrer que num instante significa algo e num piscar de olhos toda sinestesia desta mistura perde seu significado, seu paladar, seu cheiro, sobrando apenas um vestígio vazio do não-saber.

Baco Trôpi Renton
Enviado por Baco Trôpi Renton em 30/06/2019
Código do texto: T6685450
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