De Frente Com A Morte

Pois é, eu morri. Não que isso seja algo incrível. Confesso que as vezes me vinha à mente pensamentos sobre a morte, de que um dia eu iria partir dessa para a melhor (ou pior), mas logo se evaporavam. Porém não imaginei que a morte viria a cavalo, tão repentinamente como me ocorreu, ainda mais na flor da idade, e da forma vergonhosa que foi. Que desastre! O que vão pensar de mim quando acharem o meu corpo? Minha família, amigos? O que pensarão? E o pior de tudo: Quem vai cuidar do meu peixinho de estimação?

Aqui onde estou essas perguntas ficarão sem respostas, e de nada adiantará minha preocupação. Porém continuo indignado. A Morte me pregou uma peça, foi desleal comigo, isso foi inaceitável! Preciso encontra-la e tirar satisfações sobre minha situação.

E foi isso que fiz. Lá estava eu, andando por uns corredores brancos com minhas correntes (que pesavam um absurdo, diga-se de passagem), com meus trapos, pois não podia chamar de roupa aquilo que eu estava usando e descalço. Por um momento achei que estava vivo, e que tinha perdido a consciência e acordado numa prisão de segurança máxima, iguais às do Brasil, onde estive uma certa vez. Mas então o ar gélido do lugar veio em minha face, e me fez voltar a realidade, de que eu estava morto. Quando se está morto não tem muito o que fazer, as pessoas acham que dá para atravessar paredes, voar igual o Gasparzinho, flutuar e todas essas parafernálias. Grande mentira, o máximo que consigo fazer é reclamar da minha morte e das minhas algemas.

Em meio a este pensamento, que me sobreveio no corredor, senti um cheiro doce e amargo ao mesmo tempo. Vinha de uma sala. O cheiro parecia me chamar. Eu não estava com fome, sede, nem nada, até porque eu morri, então essas coisas não existem aqui. Mas o cheiro me intrigava e então entrei nessa sala. E como por acaso, achei quem eu estava procurando.

Lá estava ela, ou ele, sei lá que diabos era o gênero daquilo, apenas sabia, ou achava que sabia, que era quem eu procurava: A Morte. Lá estava, sentada numa cadeira, com seus cabelos escuros e curto. Sua pele era morena, bem oleosa. E seus olhos, negros como a escuridão, me fitavam, enquanto ela arrumava seu terno, pois estava meio sujo de poeira. Percebi que o cheiro provinha dela, e, de alguma forma, ela sabia que eu queria conversar. A princípio, ela não parecia aquilo que eu imaginava. Parecia ser simpática, simples e estilosa, nada daquilo que imaginamos quando estamos vivos. Posso dizer que era até atraente de uma certa forma, e bastante misteriosa. Me deixei viajar por meus pensamentos sobre ela por um instante, mas logo voltei ao meu objetivo: tirar satisfações.

- Você é a morte, certo? – Perguntei apenas para confirmar.

- Depende. Me chamam de tantos nomes que as vezes até eu não sei quem sou.

- Não seja cínica, você me matou, sei que foi você, e exijo saber o porquê. Porquê daquele jeito?

- Não fui eu que te matei. Você se matou. Eu apenas fiz meu trabalho, que é bastante divertido, principalmente em casos como o seu. – Me respondeu de forma sarcástica.

- Você é uma covarde. Eu tinha a vida pela frente, muito o que fazer. E tudo foi por agua abaixo. Eu não merecia isso. Não era a minha hora.

- É o que todos dizem quando chega aqui. A história não muda. Vocês humanos não possuem criatividade. Você simplesmente morreu porque essa era sua hora e não tinha o que fazer. Aliás, covarde é o nome do meu cãozinho, que está com fome e preciso alimenta-lo. Até breve.

- Não! Espere. Ainda tenho perguntas! Preciso que responda. Você não pode ir embora assim e me deixar aqui falando sozinho. Para onde vou? Que lugar é esse? Porque você me sobreveio tão repentinamente? E quanto a minha reputação, o que vão pensar de mim quando encontrarem meu corpo?

- Você é chato rapaz, igual sua mãe. Mas hoje estou de bom humor e vou lhe responder suas perguntas. Tenho todo tempo do mundo. Ser trabalhador autônomo tem suas vantagens, não é?

- Pare de me enrolar com sua ironia! – Respondi zangado. – Apenas responda minhas perguntas.

Então ela, com toda calma do mundo, pegou um café e começou a beber. Me ofereceu, porem rejeitei, com bastante raiva. Ela se sentou, ajeitou o terno e começou a discorrer.

- É o meu jeito de trabalhar. – Falou. – Gosto de agir assim. Quando as pessoas menos esperam, lá estou eu. Gosto de pegar as pessoas de surpresa. Todo mundo gosta, alias. Por isso amo meu trabalho, me divirto bastante.

- Você se diverte com as desgraças dos outros? Não se importa com a reputação de ninguém? Por isso me sobreveio tão rápido e daquele jeito? Você é sádica!

- Alguém tem que fazer esse trabalho né. – Retrucou. – Reputação aqui não significa nada, rapaz. Não importa quem você foi ou não foi, e sim o que você fez ou deixou de fazer. Eu sou assim, cedo ou tarde todos irão me conhecer. Rico, pobre, branco ou negro. Eu posso ser tudo, menos preconceituosa. – Falou rindo. – Não importa quando e como você morre. O que importa é que você vai morrer. O que acontece depois disso, bem, isso já não me compete saber, pois não faz parte do meu departamento.

- Bem, mas pelo menos você poderia ter sido legal comigo. Morrer do jeito que morri foi sacanagem.

- Eu gosto de pregar peças. Sou um ser bem-humorado. Eu levo a vida de um jeito divertido, literalmente.

- Mas eu fui uma pessoa tão boa. – Falei, lamentando.

- Todos que chegam aqui dizem que foram boas pessoas. As desculpas e explicações são umas melhores que as outras. Nisso tenho que admitir que vocês humanos são ótimos. Lembro-me de quando Hitler veio para cá, e me disse que era bom e que não merecia estar aqui. Ri como nunca naquele dia, parecia uma hiena. Me faltou até o ar e tive que ficar 10 minutos sentado me recuperando do que acabara de ouvir. Eu sabia que ele era tudo, menos humorista. Foi um dos melhores dias da minha vida. De fato, até senti um pouco de pena dele, não queria que ele estivesse aqui, ele facilitou muito o meu trabalho, se é que você entende. Mas sabe como é, no meu trabalho devemos ser imparciais.

- Mas deve ter passado por aqui pessoas boas. – Retruquei inconformado.

- De fato passaram algumas. – Concordou. – Mas aqui, ser bom não é o bastante, e nem para onde você vai.

- Mas para onde vou? – Perguntei efusivo. – E onde estou?

- Você está nos corredores do Grande Tribunal. Será julgado por tudo que fez e deixou de fazer. Agora, para onde você vai meu amigo, eu não sei. Tem que perguntar para o patrão. Aliás, olhe ali na porta, os guardas chegaram para te levar para o tribunal, vejo que seu julgamento chegou. Desejo-lhe sorte. Quem sabe a gente não se vê pelos corredores? Tenho que ir agora. – Respondeu, e levantou do sofá arrumando o terno. – O dever me chama. Parece que tenho que ir para um lugar chamado Acre, buscar uma criancinha. Enfim, até algum dia, ou não.

Então ela se foi, e os guardas vieram em minha direção, me pegando pelos braços e me levando para a sala de julgamento. Algo me dizia que a situação não era boa para mim. E não era mesmo. Nessas horas a gente pensa que está tudo certo, que estamos limpos, devendo nada a ninguém. Que fatal engano o meu, porém era tarde demais. Após o meu veredicto, cai na realidade. Nada pude fazer. E então apenas dois pensamentos vieram em minha mente: Aquela conversa com a morte foi bastante produtiva. Eu seria amigo dela, até poderia ajuda-la no trabalho. Porém nada disso adiantava mais. Mas pior que isso foi o fato de que, antes de morrer, eu sabia que não deveria ter comido aquela feijoada. Pois bem, eu morri.

27/03/2016

Inhasz
Enviado por Inhasz em 30/06/2019
Reeditado em 30/06/2019
Código do texto: T6685138
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