AGORA TE VEJO
Eu era estudante de enfermagem e vez por outra, prestava serviços em ambulatórios e clínicas médicas, a fim de ganhar um extra.
Havia um médico muito conceituado que requisitou meus serviços e, naquele fatídico dia, no instante momento em que entrei no consultório dele, deparei-me imediatamente com um jarro em cima da mesa.
Olhei mais de perto e vi uma espécie de planta, talvez um cacto, talvez. A planta tinha crescido e as folhas estavam sobre os seus papeis, enroscando-se sobre as coisas.
- Doutor, o que é isso em cima da sua mesa?
- Chegou esta manhã. Uma cliente mandou deixar aqui. Não sei o que é...
A planta mostrava longas folhas serrilhadas com bordas espinhentas. O caule leitoso, como o de uma bananeira. Era curto e grosso. As folhas estiravam-se como braços e ficavam dispostas ao redor da planta. As folhas dentadas, que eram semelhantes às do abacaxi, ficavam aplainadas sobre a mesa e pareciam se mover, semelhantes a tentáculos longos e delgados. Bem no meio da planta brotava uma espécie de carpelo arroxeado, como as bromélias, que parecia prestes a desabrochar.
- O senhor não acha meio esquisito? Parece uma planta carnívora... Não gostei muito.
- Até que eu gosto. Sinta esse perfume! – disse o doutor pondo o nariz.
A planta exalava um suave perfume adocicado, quase que imperceptível. Era como o odor de hortelã ou camomila, um tanto inebriante.
- E se for uma planta venenosa, doutor?
- Ora, deixe de bobagens! Vou até colocá-la aqui na janela do consultório.
- E o senhor sabe quem lhe mandou essa planta estranha?
O doutor fez uma cara de menino maroto, quanto está fazendo alguma travessura. Confidenciou-me em voz baixa que quem lhe havia mandado a planta fora uma cliente muito jovem e bonita. Uma jovem angolana que viera fazer alguns exames ginecológicos, um dia desses.
- Ela é uma morena lindíssima! – Disse eufórico. – e que par de pernas!
Outra vez o doutor me chamou a um canto, fechou a porta à chave e me confidenciou em voz baixa que, durante o exame, fez coisas não muito éticas. Aproveitou-se da ingenuidade da moça e a seduziu. Foi mais longe e administrou Escopolamina, que provoca amnésia e, embora a pessoa não durma, bloqueia a consciência do que está acontecendo. Um tipo de substância química utilizada com o objetivo de manipular as vítimas de abusadores sexuais.
- Doutor isso é abuso sexual! É crime! E se ela o denunciar? O senhor vai preso e ainda vai perder sua licença médica!
- Ora, que nada! Com a nossa “Justiça brasileira”? Vai ser a minha palavra contra a dela. Além do mais, ela é imigrante ilegal e ainda é uma negra africana! Não vai dar em nada! Eu tenho amigos juízes!
- Nesse caso, doutor, eu mesmo vou lhe denunciar! - bradei indignado com a confissão do médico.
Fiz menção de sair do consultório. Eu sequer lembrei que ele havia fechado a porta com a chave. Naquela hora, eu precisaria de muita calma para tentar reverter aquela situação.
- Deixe de ser idiota! Você não passa de um bosta dum enfermeiro! Eu sou um médico conceituado. Quem vai acreditar em quem? - o médico estava ofegante e raivoso. Colocou-se na minha frente, barrando a porta.
- Não vou deixar você sair daqui para criar problemas! – disse o médico, correndo para a mesa em que estava a planta. Abriu a gaveta e sacou um revólver. Tive a ligeira impressão que a planta estava um pouco maior do que a tinha visto.
- Enfermeiro féla da puta! - bradou o doutor visivelmente transtornado.
Percebi, naquela hora, o quão grave era aquele momento. No entanto, para o meu espanto, a planta que agora estava muito maior, lançou contra o médico seus tentáculos serrilhados, longos e delgados que tremulavam como serpentes esfomeadas em fúria. Balançaram por um momento sobre a cabeça do doutor, e a seguir, como se fosse um ser com uma mente demoníaca e com um instinto perverso, enrolou os tentáculos ao redor do pescoço e braços da vítima, num abraço mortal e quanto mais terrível eram os gritos de horror do desgraçado, mais altos eram os sons semelhantes a silvos e grunhidos que ressoavam da criatura que exalava agora, um fedor se tornava cada vez mais intenso e insuportável, até que finalmente, o homem deu um gemido arquejante e morreu estrangulado. Os tentáculos, um após outro, como serpentes verdes e grandes, com uma força brutal e uma velocidade infernal, levantaram-se e se retraíram, envolvendo lhe todo o corpo, apertando com descomunal força e cruel tenacidade como anacondas que se enroscam velozmente ao redor de sua presa, quebrando os seus ossos, até que não restou mais nada.
Ainda aturdido e atônito com aquela cena grotesca e inimaginável, ouvi alguém bater insistentemente à porta. Ao abrir, deparei-me com uma belíssima jovem. Ela sorriu e entrou no consultório sem nada dizer. Pegou o jarro em cima da mesa, num abraço. Beijou carinhosamente a plantinha, que agora estava diminuta. Ao sair olhou para trás e me disse numa voz melódica:
- Ya-te-veo.
*Baseado em uma lenda de Madagascar. (http://mentalfloss.com/article/27399/madagascars-legendary-man-eating-tree)