Missão na Romênia
Para as missões ditas transitórias - ou seja viagens bem curtas e curtidas - nas Embaixadas ou Delegações no chamado circuito Elizabeth Arden, que incluía New York, London, Paris, Milano, sem excluir mais outra meia dúzia de lugares glamourosos mas menos citados, eu cansei de esperar uma oportunidade, um convite, uma insinuação. E ainda estou nessa espera...
E havia ainda as missões eventuais, daquelas brevíssimas em que você iria fazer parte duma comitiva presidencial ou ministerial - a rigor, zelar pelas pastas - ou então participar duma delegação negociadora num foro multilateral, a minha qualificação de bilateralista nunca me propiciou esse sonho, a sanha, e muito menos a senha.
Contudo, quando surgiu aquela chamada para passar um mês, na ainda misteriosa Romênia em razão de uma defecção de última hora por parte de um colega que precisou de remover um canino, atacado por uma dor violenta, dessas em que você pira já - já quase na hora do embarque, no Rio de Janeiro - eu não hesitei. Solidarizei-me com o colega que aos gritos me passou a incumbência e embarquei.
Iria passar um mês, substituindo o Embaixador em suas férias ordinárias acopladas a uma chamada a serviço. Praticamente iríamos nos cruzar no aeroporto, chegada e partida sincronizadas. Do serviço mesmo, Sua Excelência, confiado na minha experiência de algum tempo de serviço no exterior, fez questão de ressaltar a absoluta imprescindibilidade de minha presença num jantar formal que se realizaria dali a uma semana. Recomendou-me ler a série de telegramas e despachos e, sobretudo, ser discreto, sem demonstrar excessivo interesse por aprender a língua local naquele curto período.
Em benefício da brevidade não lhes conto o que fiz em Bucareste nas horas vagas e menos ainda nas de trabalho. Há pouco tempo uma revelação de uso de e-mail em endereço não seguro custou uma derrota eleitoral trumpeteante, justamente a quem tinha o eleitorado aos seus pés. Hilariante, porque nos é alheio, mas o negócio, mais que feio, ficou ruço.
O jantar foi espetacular, na Transilvânia. Embora só Encarregado de Negócios, a. i. - que fica abaixo, muito abaixo aliás, da ordem dos Embaixadores, o anfitrião, simpaticíssimo fez questão que quebrar o protocolo, colocando-me à sua direita imediata numa mesa bastante extensa que comportava tão-somente cavalheiros de black-tie. À minha direita tive a companhia de Embaixador nipônico que, como Vice-Decano do Corps Diplomatique, polidamente engoliu o protesto. E até foi bem polido, e cortês para comigo, perguntando-me pela súbita viagem do titular e mencionando uma palavra que registrei mas que ainda não consegui decifrar, aparentemente algo a ver com o conteúdo local: dulakura! E a pronunciou mais de uma vez, até com certo espanto: Count Dulakura, mas abreviou logo a história para não me constranger.
Mais que espetacular, o jantar foi fabuloso, em todos os quesitos, e os havia mais do que na classificação final de uma apuração dos desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro. Champagne, vinhos de excelente qualidade, acepipes locais e, comme il faut, français. Regiamente apresentados, servidos e degustados.
O que me chamou a atenção, entretanto, foi a visão que tive da contra-cabeceira da mesa, portanto, do co-anfitrião, ou do principal homenageado do evento. Limpei minhas lentes, apertei as pálpebras, mas o que via era nada menos que um porco. Mais suinamente ajaezado que Geddel, o ser parecia perfeitamente ambientado à situação e talvez até gesticulasse um pouco mais do que a média dos felizes convivas e, além de impecável traje portava uma medalhas reluzentes no lado esquerdo do peito, que contudo não eram suficientes para despistar a prótese de madeira que lhe complementava a perna esquerda.
Na animação e até dúvida etílica não me contive e perguntei ao anfitrião sobre a inusitada figura. Todo solícito, e grave, ele não só confirmou-me que se tratava de um suíno, extremamente valioso à sua família, sobre cujo peito - eu podia ver, eram de ouro maciço - cada medalha correspondia a um feito de bravura, de lealdade, de honestidade, e integridade daquele que as ostentava. Enumerou-me ao menos onze ocasiões em que vidas da família e de próximos haviam sido salvas pelo distinto conviva.
Estarreci-me diante de tamanha dedicação e já me dando por felicíssimo da vida cometi um lapsus linguae de que de certa forma me arrependo, ao indagar sobre a prótese de madeira.
O anfitrião baixou o tom de seu discurso habitual e quase soprou-me ao ouvido:
Dragul meu prieten, atunci când ai un animal de o asemenea ajutor și încredere, așa cum știu că ai angora în Brazilia, nu îl consumi pe toate deodată. Nu o vei mai face niciodată, niciodată...
Meu amigo, quando você tem um animal de tamanha prestabilidade e confiança, como sei que lá no Brasil tens teu angorá, não o consomes todo de uma vez. Jamais, jamais dilma vez fá-lo-ás...