É sempre melhor o Cozido que você já conhece
Eu já havia conhecido muita gente esquisita, mas nada superava o que Mariana agora me falava.
Enquanto ela tagarelava em um só fôlego, observei surpresa mais uma vez como ela era hábil em usar cores berrantes flertando com uma breguice quase escancarada.
Cabelos louros lisíssimos, unhas longas entre um carmim e um rosa gritante, bijuterias gigantes e saltos platafórmicos em sandálias abertas que exibiam as unhas também vermelhas. No contexto, um horror. Mas ela tinha uma personalidade tão exótica que compensava o constrangimento de ver as cabeças virando cada vez que ela desfilava com a bolsa gigante de estampa animal e o perfume enjoativamente doce.
Era esta figura, uma mulher de meia idade que nos últimos vinte anos vivia em busca do santo graal da juventude e da plástica perfeita que agora me contava uma das histórias mais hilárias dos últimos anos.
Segundo ela, a decisão havia ocorrido naquela manhã logo após a visita do jardineiro. Mensalmente o homem vinha, cortava a grama, aparava os arbustos, cuidava das flores e limpava a piscina.
A piscina sempre era a pior parte. Como ficava descoberta, acumulava folhas e restos de plantas todo mês. E foi aí que ela teve e ideia. Após inúmeras discussões com o marido que jamais comprava uma cobertura para a piscina. Mariana resolveu dar um jeito na coisa. Partiu em busca de uma lona destas simples de casas de embalagens. Comprou dez metros de um plástico transparente com 6 metros de largura.
Em casa, tratou logo de chamar a empregada, e juntas, estenderam o plástico que ficou lisinho, preso em volta da piscina por vários vasos grandes de cerâmica. Uma beleza!
O marido, aquele que ela definia como "Cozido" a cada vez que se referia a ele, elogiou a ideia e disse que ele mesmo não faria melhor. O comentário soou ofensivo, um pouco sarcástico, mas ela ignorou.
A colocação da lona havia ocorrido logo após a vinda do jardineiro, portanto, um mês antes. Mas, na manhã de hoje, assim que o homem chegou, o "Cozido" pegou um café e foi para o jardim.
Mariana observava tudo da porta. Esperava ansiosa que ele falasse sobre a lona. E por fim, ele chegou à piscina.
Neste ponto ela respirou e eu também. Achei que se mantivesse aquele ritmo frenético de me bombardear com a história sem respirar entre as frases morreria por falta de ar. Mas, instintivamente, ela parou, abanou as mãos e inspirou profundamente antes de retomar o falatório.
O Cozido estava lá, xícara na mão, falando alguma coisa engraçada para o jardineiro que ria enquanto atacava uma trepadeira. Então, no meio de uma risada e outra, o Cozido apontou para a piscina e perguntou se o jardineiro havia gostado da ideia. O homem sorriu e disse que sim, uma ideia muito boa e barata. O Cozido então estufou o peito e na maior cara de pau respondeu que fazia tempo que tinha tido a ideia, mas faltava tempo para comprar o tal plástico. Assim que deu, ele resolveu o problema sem gastar uma fortuna com aquelas coberturas caríssimas.
Resumindo a história, a cobertura da piscina havia sido ideia DELE. Nem um crédito, nem a menção do nome dela, nem uma alusão à inciativa. Nada. Absolutamente nada.
Viu estarrecida quando ele ainda foi até a borda e explicou para o jardineiro o trabalhão que tinha sido colocar os vasos.
A partir daí, ela não viu mais nada. Ficou cega de raiva e saiu da cozinha com a decisão tomada.
Antes que ela me dissesse a decisão, quis entender o porquê de tanta raiva. Tratava-se apenas de uma ideia boba, de uma cobertura de plástico e o Cozido (neste ponto eu já me sentia íntima o suficiente para usar o apelido) só quis se mostrar um pouco.
Ela concordou. Até aceitava a vaidade besta dele, mas não era isso que pegava. Naquela manhã outra coisa havia acontecido. Enquanto ela ardia de ódio, começou a se lembrar de todas as vezes que ele havia feito aquilo.
Uma hora era a ideia do jantar com amigos que ela organizava, mas que no primeiro elogio, ele que agradecia por ter tido a inciativa de convidá-los. Depois era a disposição dos móveis, a ideia da festa no clube, o nome do cachorro e até os assuntos que ela lia e comentava com ele. Ele se apossava de tudo, repetia e se exibia como se fosse o autor.
Não que isso fosse proibido, pois todo mundo "tira proveito" da cultura e das ideias alheias. O que pegava para ela, confessou indignada e triste ao mesmo tempo, era a absoluta incapacidade dele em criar, experimentar ou ler as próprias coisas. Isso fazia dele uma farsa. Um papagaio, um plagiador com aquela imagem de sabe tudo construída à base de informações e ideias dos outros. Aquilo sim era ruim. E era exatamente por isso que ela havia decidido. Iria se separar.
Eu ouvi o desabafo e me peguei pensando se eu também fazia aquelas coisas. Provavelmente, mas me peguei pensando se o meu próprio Cozido, ou melhor, marido, também fazia.
Mas, enfim. Mariana terminou de falar e partiu em busca de uma bebida. Olhei ao redor e só então me dei conta de que as mesas do pequeno café estavam cheias e atentas à nossa conversa. Ela voltou minutos depois com duas taças de vinho branco e até pensei em recusar. Eram só três da tarde e eu tinha um milhão de coisas pela frente.
Ela colocou a taça na minha frente, bebeu metade da dela e falou pausadamente: pedi a separação hoje.
Não era o fim do mundo, ponderei. Tantos casais se separam por bobeiras, eles seriam só mais um. Mas ela continuou após alguns segundos e também pausadamente disse: e já estou com outra pessoa.
Pensei que era precipitado, mais uma das loucuras dela e que, se efetivamente ainda moravam sob o mesmo teto, aquilo cheirava à traição. Ia falar o que pensava quando ela soltou a bomba: tem quinze anos a mais que eu e é uma mulher.
Não entendi. Eu disse baixinho. E ela repetiu: tô namorando! É 15 anos mais velha! É uma mulher!
Continuei sem entender e de repente o vinho ficou bem atraente. Tomei um golão, antes de perguntar se havia escutado direito.
Mariana arrumou os cabelos platinados e sorriu através dos lábios carregados de vermelho. Entendeu sim, querida. Arrumei UMA NAMORADA.
Eu não sei se algo assim já aconteceu com alguém, mas era a primeira vez que acontecia comigo. Eu sempre fui bem tranquila sobre a opção sexual dos outros. Cada um gosta do que gosta. Mas ela? Eu conhecia Mariana há vinte e cinco anos. Ela estava casada com o Robertinho (era este o nome do Cozido) há vinte e três e jamais, em todos esses anos, ela sequer havia comentado ou dado a entender que gostava de mulher... Sexualmente falando.
Foi uma baita de uma surpresa.
Bebi o resto do vinho meio atordoada e fui buscar outras duas taças.
Voltei e ela ficou me encarando esperando que eu falasse. Depois de passado o choque eu quis saber detalhes. Robertinho sabia? Onde havia conhecido a outra doida? A outra também era casada? Tinha filhos? Bem sucedida? O marido da outra sabia e assim por diante.
Haviam se conhecido na manicure. Robertinho "ainda" não sabia. Ela não tinha marido, era "a" manicure e tinha cinco gatos.
Enfim, numa tarde cinza de chuva ela tinha ido retocar a unha e a manicure era nova. Gostou dela, conversaram por um tempo, saíram na mesma tarde, rolou a atração e ela quis tentar.
Tentar o quê? Perguntei assustada.
Um relacionamento, namoro, caso, qualquer coisa assim... Ela respondeu bem séria.
Neste momento confesso que fiquei sem ar. Como assim? Tipo beijo, abraço, mãos dadas estas coisas?
Não. Ainda estavam se conhecendo. Tudo muito devagar. Mas por ela, pela doida da Mariana, já deviam assumir publicamente.
Nunca conheci ninguém mais surtada e inconsequente quanto aquela que agora me contava aquela história completamente sem pé nem cabeça.
Estavam programando uma viagem para o litoral daí a 15 dias. Após, abririam o jogo para as respectivas famílias. Iriam morar juntas.
Aquilo era, no mínimo, surreal. Tão estranho que eu pensei que era algum tipo de pegadinha e comecei a procurara as câmeras. Não havia nada. Era verdade, ou ao menos a louca da Mariana achava que era.
Eu não conseguia elaborar a informação e para tentar entender, perguntei se ela não gostava mais de sexo. Com homem, frisei.
Gostava. Até a última fantasia de Game of Thrones que ela tinha meticulosamente preparado, e que ele, na hora "h" deu a entender que era ideia dele. A partir daí nada mais rolou e ela já não tinha certeza se era tão "booom" assim.
Por isso ela tinha desistido de homem. Somou as coisas.
Com uma mulher seria tudo mais fácil. Com certeza se entenderiam, falariam sobre coisas de mulher, surtariam como mulheres sem receber crítica, se tocariam onde gostam, escolheriam os esmaltes juntas e comprariam roupas e coisas para casa sem ninguém de cara feia olhando no relógio.
Com Rita as coisas aconteceriam sem neuras.
Quem é Rita, pelo amor de Deus?
Minha namorada, ela respondeu orgulhosa.
Tomei minha segunda taça de vinho antes de perguntar se ao menos Rita era bonita, pois Robertinho tinha lá seus defeitos, mas era um gatão.
Rita não era bonita, era até feinha, tinha problemas com hormônios, mas era fantástica.
Era inteligente? Rolava bom papo? Eu precisava ganhar tempo para tentar entender a loucura da minha amiga.
Também não era culta. Nem bem sucedida e nem descolada. Meio agressiva às vezes, mas era muito querida. Rita teve uma vida difícil, quatro relacionamentos sérios, problemas com bebida, uma passagem pela polícia... Mas tudo isso havia mudado depois que ela havia se convertido.
Foi esta hora que comecei a rir. Rir, não. Gargalhar!
Quando me controlei e enxuguei as lágrimas do riso, vi que ela continuava me olhando muito séria. Quis fazer uma piada e ela continuou séria. Tornei a me compor e continuei a conversa.
Ela estava namorando uma mulher mais velha, cheia de problemas, feinha como ela mesma dissera, convertida em alguma religião maluca, sem grana, sem cultura, sem atrativos e estava feliz?
Feliz, feliz não estava, respondeu já mais calma. Mas era o que queria. Estava de saco cheio das maluquices do marido. Um cara surtado, descompensando, exagerado e totalmente sem noção.
Sei... resmunguei pensando se ela se enxergava, pois era exatamente como descrevia o marido.
Um relacionamento com uma mulher, tinha um quê de feminino, delicadeza, meiguice, continuou ela.
Até podia ser, mas não com a tal Rita! Pensei, mas não falei.
E vai deixar a casa de seiscentos metros quadrados com piscina, o carrão na garagem, as três empregadas, a massagista, o cabeleireiro, as joias e a o Cozido gatão sozinho para outra?
Nesta hora percebi que Mariana vacilou.
Não vou deixar nada! Respondeu furiosa.
Expliquei se ela realmente continuasse com aquela maluquice que Robertinho a deixaria sem nada e que provavelmente ela passaria os últimos dias auxiliando Rita no processo decorativo de unhas.
O povo nas mesas ao lado agora nem disfarçava que estava ouvindo. A coisa toda era uma comédia, protagonizada por uma doida. Vendo de fora, era hilário e eu não tinha como censurá-los.
Mariana alisou a bolsa de estampa de oncinha e me olhou com aqueles olhos carregados de maquiagem azul.
Você acha mesmo?
Claro! Respondi aliviada. Não seja tola. Dê uma lição no Cozido, tome posse do que é seu, mas pelo amor de Deus NUNCA MAIS FAÇA AS UNHAS COM RITA!
Tomamos mais uma taça de vinho e Mariana se despediu deixando para trás o perfume de baunilha, cravo e outra coisa adocicada que não identifiquei. Antes de ir me prometeu que pensaria no assunto.
Quinze dias depois me mandou um convite. Uma festa. Na tal piscina. Sem a lona. Muito espumante, casa cheia.
Mariana e Robertinho estavam grudados. Ela se desdobrava em carinho, ele em elogios. Na primeira oportunidade perguntei o que havia acontecido.
Disse que depois daquela tarde havia pensado muito. Estava muito chateada com Robertinho e percebeu que a coisa toda com Rita era só uma vingança besta.
Ufa! Exclamei contente, mas ela não me deixou falar e continuou a explicação:
Fui até ela, lá no trabalho para dizer que aquela besteira não daria certo. Rita me interrompeu e disse que estava havendo um engano e blá, blá, blá. Ou seja, Rita me descartou! Fiquei chocada! Ela estava me dispensando! Fiquei arrasada, porque quem tinha ido lá fazer isso era eu! Mas, enfim, ficamos amigas e ela disse que podia me ajudar, que queria conversar com Robertinho.
Ela veio até aqui. Eu a apresentei como uma "amiga" e os dois conversaram por umas duas horas.
Quando ela foi embora, Robertinho me agradeceu e disse que tinha entendido muita coisa e que tinha sido a melhor conversa que ele já havia tido com um homem... Apesar dele se parecer com uma mulher.
E foi então, amiga que eu descobri que Rita, na verdade, era Agnaldo. Fiquei bem feliz, sabe? Porque uma coisa é ser dispensada por um Agnaldo, outra bem diferente é ser por uma Rita!
Não entendi o comentário e nem quis. Como eu disse, Mariana sempre foi uma doida de pedra, mas esta história extrapolava até as maiores maluquices dela.
E Robertinho?
Ah, estamos bem! Cozido por Cozido eu já conheço o meu, né? E depois, finalmente consegui usar a tal fantasia de Game of Thrones!
O Cozido, o melhor Robertinho então se aproximou, cochichou alguma coisa no ouvido dela que saiu rindo e rebolando em seu longo extravagante de estampa de zebra.