A Quarta Feira e o Sr. Calendário

O Sr. Calendário pôde descansar tranquilo em seu precioso trono. Pôde respirar aliviado. Teve uma tarde indigesta. Uma das mais conturbadas e turbulentas de toda a sua vida. Por pouco, não causava uma tragédia. Para sua alegria conseguiu se safar. Saiu daquela situação com saúde. E ainda, com um sorriso meio sem graça estampado no rosto.

Aquela tarde neurótica e problemática tosou sua pouca paciência. Começou a esgotar-se no momento em que o sol começara a alterar-se, como um rojão de fogo que não perdoa. O conhecido sol das treze horas. Aquele quente e grosseiro.

E o Sr. Calendário enxugava o suor que escorrera pelas beiradas do rosto, quando ouviu as fortes batidas no portão do seu castelo. E aquele barulho estrondeante na porta de aço foi provocado pela Quarta Feira. Num ato de bravura e coragem deferiu os golpes com violência, esmurrando sem dó, até ser atendida:

- Como pode ficar aí sentado enquanto o clima lá na praça é de guerra? Um total desespero!

- Qual é o problema agora?

A Quarta, intelectual e sábia, explicou todo o problema para o Sr. de barbas brancas. Contou-lhe das manifestações da população, que já tornava-se constantes. Passeata por menores jornadas de trabalho, mudanças nas leis trabalhistas e período maior de férias.

Não era a primeira vez que os moradores causavam alvoroço na cidade Calendalorândia. E as insistências e reclamações sem fundamentos deixavam o Sr. Calendário irritado. Conversavam com a população e prometia melhoras. Mas nada fazia. Não podia. Mas perdeu o restinho da pouca paciência. Confidenciou a Quarta o que faria. E estava disposto a falar toda a verdade. Doesse a quem fosse. Precisava acabar com aquilo. E avisou a Quarta:

- Não aguento mais. Já chega. Vou falar toda a verdade. Se querem reclamar, agora terão motivos.

Aqueles dizeres deixou a Quarta preocupada. Foi caminhando atrás do Sr. Calendário que apertava o passo. Batia o pé e bufava de raiva.

Subiu ao coreto da praça e pediu a atenção de todos. Diante do olhar apreensivo de toda a população, o Sr. Calendário, estressado, cansado de tudo aquilo, estava determinado a rasgar o verbo. Não mais importava com a paz e sossego no coração de ninguém ali presente. Sem preocupar-se em ferir ou machucar os sentimentos daqueles cidadãos de bem, usou a palavra como uma arma assassina e impiedosa.

- Não gostaria de chegar a este ponto. Nunca. Mas vocês obrigaram-me. Agora sofram com o prejuízo. Não queria falar mas não posso mais esconder este segredo.

Os moradores arregalaram os olhos. Sabiam que o Sr. Calendário as vezes era grosso. Ora estúpido e ignorante, mas não tanto quanto naquele momento. Seu semblante mudou. Parecia um monstro a procura de vítimas. Tomado pela raiva, respirou fundo e com a fala entrecortada, atirou a frase assassina:

- Somos apenas um simples pedaço de papel. Somos uma mera ficção. Não somos nada. Nada. Estão reclamando por nada. Nossas vidas não tem sentido algum.

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Um silêncio sepulcral tomou conta de toda a praça. Escutava-se apenas lágrimas batendo no chão, nascidas daqueles rostos tristes. Abatidos. Era como rasgar a certidão de nascimento. Morriam aos poucos, como um diagnóstico daqueles cruéis, que jamais gostaríamos de ouvir.

A terrível atitude do Sr. Calendário foi de fato como um tiro certeiro. Nada discreto. Considerando que tudo estava perdido, continuou:

- Se acham que trabalham muito, enganam-se. Não sabem o que é trabalhar. Existe um mundo lá fora que precisam conhecer. Uma terra onde a maioria parecem um bando de malucos. Trabalham o tempo todo.

As palavras proferidas pelo Sr. Calendário causaram impacto. Aniquilou a esperança da população, que não tinham mais força para ouvir de tão feridos que estavam. E ele continuou:

- Se pudessem passar um dia lá, veriam o que é realmente trabalhar. E eles nos usam e depois descartam. Não somos nada. Acreditem. Nada.

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A Quarta, apaixonada pela cidade e discípula da bondade e otimismo, vendo toda aquela tristeza, tomou uma iniciativa. E Agiu rápido. Subiu até o coreto e tomou o microfone das mãos do Sr. Calendário que por mais que tinha o coração duro, ficou comovido com a expressão facial dos moradores.

O dono daquelas barbas brancas já não podia fazer nada. Apenas lamentava. Considerou o caso perdido. De tão abismado, esqueceu-se da estudiosa Quarta Feira. E ela, com todo seu conhecimento, tentou salvar a cidade. Juntar os cacos que sobrou. Sempre teve como filosofia de vida que as mesmas palavras que ferem e matam, convertidas com amor e fé, podem curar e salvar. E foi em busca do título de heroína:

- Calma! Não se abalem. O Sr. Calendário se precipitou. Não é nada disto.

Aquelas palavras de conforto nada adiantaram. Para ninguém. Não tiveram força nem para erguer a cabeça e ver quem dirigia a palavra. Lagrimas continuavam a encher as ruas. E a Quarta, persistente, continuou com sua tentativa:

- Todos conhecem-me. Sabem que sou estudiosa. E amo todos vocês. Amo-os. Faria de tudo por vocês. Amo-os. Amo-os. E o melhor. O mundo lá fora também nos amam.

Lentamente, um e outro começou a levantar a cabeça. Apesar de estarem quase mortos, ainda tinham vida. Respiravam. O coração batia suavemente. E a palavra amor, dita com verdade e confiança pela Quarta, reascendeu a vontade de voltar a vida.

Diante do tento sadio e glorioso, um morador se manifestou:

- Como pode provar isto?

A pergunta animou a Quarta Feira, que com os olhos marejados, encontrou motivos para sorrir. Viu que poderia reanimá-los. Ainda tinha tempo de trazê-los de volta ao mundo. O Sr. Calendário apenas observava tudo. Estático. Não mexia nenhum músculo do corpo. Nenhuma veia.

A Quarta aproveitou o momento em que 1 1/13 dos moradores direcionavam os olhares em sua direção e usou da sinceridade para trazer de volta a paz a cidade:

- Eles tem fotos nossas em suas casas. Espalhadas por alguns cômodos. Estamos em todas as cidades. Sem saber e projetar nada, somos democráticos. Ricos, pobres, brancos e negros, todos eles nos curtem.

- Como assim? Está apenas tentando o improvável – gritou um morador. E continuou – agora é tarde. Estamos convencidos que nada somos.

- Descobri que mais de 95% da população daquele mundo lá fora, tem nossas fotos estampadas nas paredes de suas casas, nos locais de trabalho. Conversam a nosso respeito o tempo todo.

- Isto é verdade Sr. Calendário?

Aquela pergunta foi acompanhada por olhares apreensivos. Aqueles nobres cidadãos aguardavam uma palavra amiga vinda de quem teria causado toda aquela confusão.

- Acho que sim. Não sei ao certo. Só posso dizer que eles rabiscam nossos corpos. E o pior e mais injusto é que depois de um tempo eles rasgam os nossos retratos e jogam fora. Eles nos mandam para o …

- Pode parar por aí! Está enganado Sr. Calendário. Eles nos vestissem com roupas novas. Diferentes poses e formas. Novos designers. É incrível. Vocês não imaginam. Eles nos deixam elegantes. Na moda. Com trajes envolventes.

Alguns moradores ainda estavam desconfiados. Cheios de dúvidas. E estavam certos. Eram inteligentes o suficiente para entender que se fossem tão importantes assim, certamente o Sr. Calendário não tocaria na ferida de forma tão rude. E a Quarta, logo percebeu a situação. Apesar de todo o otimismo, foi realista. Crítica. E muito verdadeira.

- Olha, sei que estão desconfiados quanto aos meus dizeres. Mas confesso a vocês uma coisa: de fato, alguns nos amam e outros nos odeiam. Mas uma coisa é certo: ninguém lá naquela cidade vive sem está cidade maravilhosa. Ninguém vive sem nós. Repito: somos especiais!

Os corações daqueles nobres seres mortais, antes despedaçados, naquele instante estavam quase sendo curados. Sendo refeitos com o poder da palavra transformadora e sábia da Quarta Feira. Lentamente os moradores enchiam-se de orgulho. Aos poucos iam ficando tão cheios de encanto que se fossem mais leves, voariam alegremente. Flutuariam nos braços da inspiração.

A satisfação aumentava a cada palavra reunida que chegavam como um sopro aos ouvidos. O sorriso de prazer começou a decorar algumas faces. Esqueceram das falas do Sr. Calendário. Ele mesmo não acreditava no que ouvia. Sentiu o corpo arrepiar. Queria gritar de tanto regozijo. Conteve-se. Já havia aprontado demais. O momento era só escutar as falas da Quarta, que empolgada e em estado de êxtase, não economizava sílabas:

- E vocês acreditam que eles usam nossa imagem comercialmente? Fazem muitas propagandas. Ganham muito dinheiro com nossa imagem. Se não tivéssemos tantos méritos, não colocariam nossas fotos ao lado de produtos, informações de serviços e as lindas crianças. É tudo muito mágico!

- Quero minha parte neste negócio! Parece ser lucrativo. Rentável.

Aquele comentário serviu para mostrar que a situação estava quase revertida. Foi como uma piada que caiu do céu. A melhor do mundo, pelo momento difícil e embaraçado em que todos ali passavam. Arrancou tamanha gargalhada de toda a população. Até mesmo do Sr. Calendário.

Ainda aproveitando o progresso do seu tento, a Quarta explicou aos moradores que além da forma impressa e fixa, ressaltou a questão tecnológica e móvel. Disse a eles que estão até em formato digital. Mesmo que não sejam requisitadas todo o tempo, estão inseridos no mundo tecnológico. Guardados na memória de pequenos aparelhos, febre de toda a população humana. Esclareceu mais detalhes sobre as pecinhas estranhas e cheias de novidades, que todos eles estavam expostos.

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O Sr. Calendário assustou-se. Não tinha pensando daquela forma. Não imaginava que era assim. A Quarta tinha toda a razão. E ela afirmou para os moradores da cidade de Calendalorândia que todos eram sim, muito importantes. Essenciais. Fundamentais. E que o outro lado do mundo precisavam deles. Eram dependentes. E por isso precisavam continuar em paz. Respeitando uns aos outros.

Explicou carinhosamente que eles marcavam presença em residências de luxo e de lona. Nos tetos de lajes e lares de telhas. Eram democratas e deveriam sentir orgulho por isto. Uma cidade única. E a única dentro de tantas outras espalhadas pelo continente. Com diferentes estilos de vida.

- Gente, não podemos desapontar aqueles que vivem em função de nossa existência. Nossa organização. É uma responsabilidade grande. Estou certa Sr. Calendário?

Enquanto todos aguardavam uma resposta, ainda com os lábios distendidos, o Sr. Calendário corria os olhos vagarosamente por toda a praça. Queria falar algo, mas as palavras não saiam. Engasgou. Estendeu a mão, pedindo espera. Não podia mais errar. Reconheceu toda a confusão que causou. Reconheceu que foi salvo pela Quarta, um ser notável e afável, bem mais jovem que ele. Resolveu soltar algumas palavras, mesmo que saíssem tropeçadas em sua língua, desabafou:

- Desculpem-me! Estava tenso. Sofria por esconder isto de vocês. Nem sonhava que era assim, como disse a Quarta. A vida, de fato, tem sempre dois lados. E quase sempre optamos pelo pior. Um grande erro.

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Alguns entenderam aquele relato como uma mensagem otimista que deveria ser levada na bagagem da memória para o resto da vida. E sempre que possível, ser lembrado.

Alguns moradores se abraçavam. Comemoravam. Aquela descoberta trouxe luz a vida. Lágrimas percorreram o mesmo trajeto pelo rosto, como no início da tarde, mas com outro significado. Brilhavam e moldavam o rosto como um rio puro e limpo.

A Quarta salvou a cidade do caos emocional. Virou heroína. E o Sr. Calendário seguiu para o seu castelo. Foi descansar em seu trono, depois de uma tarde difícil.

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 30/12/2015
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