O beijo
Mãos trêmulas, abertas, contornam o corpo já gelado e cinza. Não o toca, apenas o circunda. Em sua mente, imagina que passa o calor de tua alma para aquele corpo. Acredita também que almas aquecem o corpo, que corpos se revestem de alma. Ingenuamente se pergunta se em algum lugar do universo terá alguém que sentirá teu calor. Alguém que meça mesmo, o fato, se a temperatura humana aumenta no momento do coito, do próprio coito.
As mãos continuam a viajar pelo corpo de cimento. Pernas são esculpidas pelo vão que sobram dos dois seres, o inerte pela morte repentina, e o vivo pela vida tão mal vivida. Não quer tocá-las, mas também não quer parar com o ato sinistro. Numa atitude única de criança, fecha os olhos fortemente, quase fazendo com que viesse uma dor cerebral, imagina por quais caminhos aquelas pernas tinham percorrido. Tuas ágeis decifradoras descem pelo enigma e chegam aos pés.
Dessa vez os tocam. Os agarram como loco. Quer transmitir teu calor, como num ato milagroso, transferir a vida. A sua não mais existir, e dela retornar. Fazer com que se mexe ao menos, ou corpo da moça, ou a vida do moço. Mas para que? Com qual intenção alguém faria isso? Ainda mais alguém que não estava tão realizado na vida.
Como era inteligente, não se enganou em chamar tal ato de amor, ou de altruísmo. Reconhecia de longe o que consistiam tais atos ou sentimentos. Identificava que se o que imaginava acontecesse, seria mais motivado pela indiferença do viver. Pura e simples indiferença de se tornar mortal. Agarrados ao montante de pele e osso, suspira por tudo o que gostaria de imaginar, de querer saber daquela vida e não conseguir se quer visualizar por qual calçada eles teriam pisado.
Imagina sim, coisas da própria vida. Lembra-se do tempo de colegial, de como sentava nos bancos do pátio e conversavam coisas felizes, engraçadas, terríveis e verdadeiras. Lembra da camiseta branca do uniforme, lembra do jeans velho, escrito com os nomes dos amigos, e se não se culpa por ser o único a ter feito.
Vem a mente, à rua mais movimentada da cidade, os pontos de bares, que ficavam cheio de pessoas legais, cheios de mesas postas sobre a calçada das praças e que quantas vezes passara ali, sozinho, caminhando lentamente, observando os sorrisos, as tragadas, o envolvimento de todos, os copos sendo esvaziados, e ele lá, tão só, mas não tão sozinho como presumia. Estava bem mais só agora, agarrado, encranhado ao pé.
Sente-se um pouco nauseado pela ideia que acabara de ter. Quer morder o pé. Sentir o gosto, quem sabe assim, passaria a dar conta da existência da morta, e logo, numa antonomásia existencial, a vida. Incrustar os dentes tão fortemente, capazes de atingir as juntas dos dedos, quem sabe, separá-los.
Abre os olhos, olha para a coisa que será introjetada ao teu ser, e não pensa, não exita, precisa realmente fazer aquilo. Morde, firmemente, um ato digno de um gladiador romano, tão nobre, comparado a reis e rainhas que batalham por causas justas.
É duro, gelado, não corre sangue. Não desiste, mas força, morde, morde, morde. Sente um gosto de ferrugem na boca. Separa os ossos. Começa a mastigar o que ficou em sua boca. Começa a sorrir, sim é feliz, o gosto não é bom, mas está feliz.... masca, seja feliz, masca, seja feliz... apenas o osso. Sujo, fino, semelhante a uma pedra encontrada num fundo rio.
Retira-o da boca com a mão que antes contornavam o corpo do cadáver, e com a mesma mão, só que agora cerrada, pressiona contra teu peito. A mão, o osso, o peito. Sente que a boca está suja, não quer limpá-la, porém, agora, com o osso na ponta dos dedos, como batom, contorna os lábios.
Iria beijar as lembranças, as pessoas das calçadas, os amigos escritos na calça. Contorna os lábios murchos dezenas de vezes. Pressente, a revelação chegando. Sim, com os lábios passaria a ver o sentido que sempre buscou. Com o beijo, ressuscitaria a princesa, tocaria as lembranças, traria de volta o verdadeiro. Sim, os contos de fadas nos fazem enxergar. O beijo, com o batom de osso, com o gosto de cerne morte, o ressuscitara.
Deita junto ao corpo na maca. Fica de frente, olhando... não vai beijar, já não é preciso.