LETRAS INSANAS

Na academia de poetas situada, numa cidade gaúcha, um fato inusitado aconteceu, o querido e renomado professor Eurípedes Barreto, resolveu escolher dois poemas em suas anotações, para discutir com seus alunos, procurou aqueles que forçassem uma discussão bem acirrada, então lembrou de dois grandes autores, pegou o primeiro poema, Versos Íntimos de Augusto dos Anjos e o outro escolhido foi  o de nome Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.

Logo que pegou as folhas, onde havia transcrito os poemas, as letrinhas e sinais, saíram correndo dos papéis e começaram a girar à sua volta enlouquecidas, formando palavras conjuminadas e versos mistos dos dois poemas. O professor arriou sentado fortemente em sua cadeira, não entendendo nada do que estava acontecendo, mas, passou a tentar decifrar o que as letrinhas estavam querendo lhe transmitir, nem deu conta de quão doida e insólita era aquela situação, a verve poética, vibrava muito mais forte do que a razão, naquele momento. “Ninguém, assistiu ao formidável que em minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, “Nossos bosques têm mais vida, quando acostuma-te à lama que te espera”, “Sem que desfrute os primores, toma um fósforo, acende teu cigarro”, o professor estava completamente atordoado, que raio de sentenças loucas eram aquelas?

Os versos misturavam os dois poemas, criando novos e novos poemas, de um arroubo insano só, tentou pegar uma palavra, quando ela passou em frente aos seus olhos, e conseguiu, a segurou firmemente, então, as outras caíram pelo chão, sem nenhuma formação, apenas letras soltas no piso lustroso de linóleo, de sua sala de aula. Contemplou a palavra que pegara e era ingratidão, palavra do poema de Augusto dos Anjos, com a outra mão, foi juntando as letrinhas que estavam no chão e as colocou, em cima das folhas de papel onde antes elas estavam escritas, elas se acomodaram sozinhas tal qual quando os poemas foram transcritos, ficando vago o espaço da palavra ingratidão, que ele ainda mantinha na outra mão bem apertada, tentou ler o poema sem a palavra para ver se ele perdia ou não o sentido e achou que talvez, ela pudesse ser retirada, pois a compreensão seria a mesma.

Não se apercebendo, do fato fantasioso que estava presenciando, colocou um peso de papéis sobre a palavra, e resolveu que aquilo tudo que acontecera, seria o tema da discussão de sua aula daquele dia, que loucura!

Quando, seus alunos chegaram e se acomodaram em suas carteiras, ele começou a aula, explicando o que acontecera minutos antes e pôs-se a discorrer sobre os poemas, não olhou para os alunos, que estavam boquiabertos, achando que seu querido professor Eurípedes, simplesmente, surtara, aquela história era completamente absurda, mas, enfim, achando que se tratava de um teste para suas mentes adolescentes e febris, relevaram e deram corda, discutiram os poemas, como já haviam feito com outros em outras aulas.

Até que, não se sabe como, a palavra ingratidão, saltou do peso de papéis e se colou à testa do aluno mais brilhante da classe, e isso foi realmente inexplicável, todos perceberam que não haviam dado crédito, à insólita história que o professor contara no início da aula, quando era tudo verdade o que ele antes relatara. Um silêncio sepulcral se apossou da classe, ninguém sabia o que pensar ou falar naquele instante, será alguma arma química fora jogada sobre a academia e deixara suas mentes confusas? Seria um surto coletivo? O professor era um invasor de mentes e os estava manipulando?

Coisas sem sentido algum, burburinhavam em suas cabeças pensantes, mas, nada que pudesse resolver aquele episódio fantástico, era uma comoção muda e geral.

Após alguns momentos de absoluto silêncio, o rapaz, agora portador da palavra ingratidão, colada bem no centro de sua testa, resolveu descolá-la e devolvê-la ao poema original, ela pareceu satisfeita com o feito, pois se acomodou tranquilamente no papel em seu lugar exato, e nada mais aconteceu.

Professor e alunos se entreolhavam sem saber o que dizer, pois não havia explicação possível; Depois de alguns instantes, começaram a discutir o assunto e os poemas, com sofreguidão e apuro nos comentários, num acordo coletivo resolveram não explanar para outras pessoas o acontecido, salvo o inusitado do fato, a aula fora por demais proveitosa e tiraram como lição daquele dia, que de alguma forma estranha, quase de outro mundo, as palavras voadoras, fizeram com que eles se expressassem com muito mais criatividade, do que em outras aulas, o que foi muito válido.

Durante o curso de poesia brasileira, que era a cadeira pela qual o professor Eurípedes Barreto era responsável, o mesmo fato aconteceu outras vezes, mas, como uma coisa assim poderia não ser muito bem interpretada por outras pessoas, todos os alunos e o próprio professor, resolveram manter em segredo, aquelas aulas tão interessantes, por assim dizer, foi um ano letivo incrível e de experiências fantásticas, para aquela turma da academia gaúcha de poetas.


 
Cristina Gaspar
Rio de Janeiro, 15 de julho de 2015.
As frases (versos) embaralhados citados no texto, são parte integrante dos poemas Canção do Exílio de Gonçalves Dias e Versos Íntimos de Augusto dos Anjos.
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 15/07/2015
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