O enigma das fotografias

Um dia, as quatro fotografias de dona Joana com a família, que estavam penduradas na parede da sala, amanheceram irreconhecíveis. Era estranho. Intrigante. As imagens estavam tão desbotadas e deformadas que não se conseguia distinguir uma foto da outra e, alem disso, aparentavam ter muitos anos de existência. Ninguém sabia o motivo, pois, outras fotos que estavam próximas a elas, muito mais antigas, não se apresentavam desbotadas ou envelhecidas, daquele jeito.

Se acreditarmos que há inteligência nas coisas, diríamos que aquelas fotografias, sentindo-se solitárias se desmancharam de propósito, por causa das saudades que sentiam de dona Joana, desde que ela as abandonou. Era a única explicação para o fato. Sentado no sofá, em frente ao que restou das fotos, esta ideia ficou martelando minha cabeça.

De repente, ouvi vozes. Olhei para todos os lados para ver quem estava falando, quando então, notei que as vozes vinham de uma moldura que se inclinava em minha direção. Assustei-me, e enquanto me recompunha, vi que as outras molduras se juntaram a ela. Acomodei-me no sofá e me concentrei para ouvi-la, e aí, ela me contou a seguinte história:

- Todas as manhãs, desde que nos dependurou na parede da sala, dona Joana parava em nossa frente e ficava nos observando. Nós refrescávamos sua mente trazendo as recordações daqueles momentos alegres da sua vida, eternizada no tempo. Ela estava em todas, juntamente com as filhas, genros e os netos. Com o passar do tempo ela desenvolveu uma relação mais intima conosco. Por isso, gostava de nós e até conversava com a gente. Fotos não conversam com pessoas, mas as pessoas conversam com as fotos. Aqui de cima nós a escutávamos e ficávamos felizes.

- Bem, tudo começou a acabar quando, um dia, levamos um grande susto. Dona Joana ao passar pela sala parou em frente a nós e não nos reconheceu. As lembranças desapareceram da sua mente como por encanto. Simplesmente, sumimos da sua memória. Só depois de alguns minutos, tudo voltou à normalidade e ela se sentiu aliviada e nós também. Depois de recomposta daquele esquisito lapso de memória, ela nos deixou de lado, e saiu da sala.

- Na manhã seguinte, dona Joana veio nos visitar e reencontrou todas as recordações que precisava. Entretanto, nos dias que se seguiram novos episódios de esquecimento se repetiram, nos deixando assustadas. Ela pensava que esses incômodos passariam com o tempo. Por isso não se preocupou. No entanto, a frequência dos lapsos de memória foi se sucedendo de forma incontrolável, tornando-se mais frequentes e demorados, deixando-nos angustiadas. Foi assim nas semanas e meses que se seguiram. Algum tempo depois sua mente não era mais a mesma. Não se lembrava das coisas como antes. E, seus modos e humores mudaram, trazendo alguns ingredientes novos, como trocar os nomes das pessoas ou fazer perguntas que minutos antes já havia feito.

- O tempo foi passando e sua memória ficando cada vez mais fraca, até se mergulhar completamente nas brumas do esquecimento. A essa altura dona Joana já não se reconhecia. Deixou de cuidar da casa e se esqueceu de nós. Foram-se as histórias, os parentes, os nomes, as cidades, as lembranças dos tempos felizes, e aqui na parede, nós ficamos completamente abandonadas, sem poder fazer nada. Sentíamos-nos sozinhas naquela imensidão de parede, apesar da vizinhança que não era pouca. Naquele lugar só encontrávamos conforto quando dona Joana vinha nos ver. Cansadas de esperar por suas visitas, decidimos deixar aquele papel fotográfico e fugir da moldura que nos sustentava. Desmanchamos-nos e deixamos em nossos lugares os borrões esbranquiçados, semiapagados que hoje você vê.

Quando acordei, estava deitado no sofá da sala, de frente para as fotografias. Ao me dar conta de que estava dormindo, me pus a pensar no absurdo daquele sonho. Ou eu poderia estar acordado? Já não tenho certeza de mais nada. Só sei que todas as vezes que olho aquelas fotos, eu penso nisto e me pergunto: Será possível?