O Bolão da Ginuveva

A sua mera visão despertava na gurizada aquele irrefreável e interminável refrão: Bolão, reco-reco, violão, Bolão, reco-reco, violão! E o Marzim já nem mais reagia à provocação. Sozinho, ele não conseguiria pegar nenhum dos seus lépidos e intrépidos algozes. Era, desde era primeva, o Bolão da Ginuveva.

Nascera com defeito glandular e cardíaco congênito, e assim evoluíra, naquela lateralidade cada vez mais rompante. Já nem ia pra rua, e muito menos se arriscava oferecer-se para compor uma pelada de futebol. Era ignorado. E ficava então no peitoral da janela, a observar - e na prontidão para recuar, principalmente se se aproximasse a molecada da turma do Alto, a mais abusada.

A mãe vivia preocupada com a sorte daquele rebento, e o mimava a cem por cento, mas já não sabia se o estimulava a se manter recolhido ou a buscar companhia no seio da ruaria. E tava que ralhava com os minino ordinário que passassem sob suas janelas e ousassem demonstrar ar inquisitivo sob qualquer motivo.

E sobrou até pra mim, um dia, logo eu que de Marzim até me compadecia. E se deu quando eu vinha voltando da escola e o percebi, à distância, vanguardeado pelo irmão Nini, que foi logo me abordando da maneira mais policialesca e me desafiando a fazer aquilo de novo. Neguei, repeli, mas neca de convencer o impávido Nini, mais velho e mais forte do que eu. Além de roído por uma pretensa ofensa ao rotundo irmão seu.

Valendo-me do espaço que ainda nos separava, dei meia volta e me pus em desabalada carreira, morro abaixo. Escapei por pouco da sanha de Nini. E chegando em casa abri o bué. Meus pais estimularam-me a ir à casa de Dona Ginuveva e denunciar a injusta perseguição. A emenda saiu pior do que o soneto. Belicosa, ela se fez partidária do filho, praguejando que eu havia caçoado dele mesmo, e não me deu chance senão de debulhar mais lágrimas.

Aí no entanto, em meio ao espanto e a bancar o santo, até me comovi quando uns poucos anos depois o livramento prematuro de Marzim foi anunciado no alto-falante da matriz. E contudo, desinfeliz, nem ver como ele se continha no seu ataúde eu quis.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/02/2015
Reeditado em 06/07/2023
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