Depois que li Caim
Estava ansioso que chegasse logo a hora do voo. Até porque não é todo dia que se espera alguém tão ilustre, um português que mostrou sua terra ao mundo inteiro, um Portugal muito além do fado.
Duas horas antes eu já estava sentado no saguão do aeroporto a olhar os quadros eletrônicos onde os voos eram mostrados, com horários, partidas e chegadas. A musiquinha que os anunciava não parava de tocar. Meu ouvido já o enxergava saindo pela porta principal do desembarque.
Confesso que estava muito contente e sem medo. Um homem considerado muito controverso. Um dia alguém, o entrevistando, lhe perguntou por que existiam tantos homens bons que não acreditavam em Deus e ele, imediatamente, respondeu: e por que existem tantos homens maus que acreditam em Deus?
Esse era o ilustre escritor que, apenas após a sua morte havia me permitido conhecê-lo mais de perto, ao ponto de aceitar ficar hospedado em minha própria casa por três dias. Pensou muito sobre a vida através das palavras.
Ainda não me interessa informar aos leitores quem é esse defunto que resolveu me visitar em Recife. Chegou o voo. Acho que agora é ele. Vou me apressar para alcançar o portão de desembarque. Ele é exigente com seus compromissos. Ainda bem que só eu sei que ele está chegando nesse voo 985 proveniente de Lisboa, senão o aeroporto se encheria de curiosos para vê-lo. A imprensa não daria sossego ao escritor famoso. Será ele magro?
Já li em algum lugar que ele nasceu em Santarém, no Ribatejo, aos dezoito de novembro. Seu ateísmo e seu iberismo o tornaram conhecido mundo afora. Um comunista fidalgo, cheio de palavras críticas na boca, prontas para, de forma organizada e ousada, serem postas aos ouvidos quando fosse provocado. Que diga o clero da Igreja Católica com os quais tanto conflitou. Apesar de tudo, foi um grande escritor.
Não, foi engano. Meu amigo famoso não chegou. Sua aeronave ainda demorará alguns minutos. Lembrei-me de seu primeiro livro. Foi no ano de 1947, quando tinha apenas vinte e cinco anos de idade. Coitado, nem ao título teve o direito de ver sobre o romance. Mudaram para Terra do Pecado, decisão que o fez odiá-lo até sua morte. Um livro órfão. Não vendeu quase nada. Ficou dezenas de ano no anonimato. Mas quando ele ganhou o Nobel de literatura, aí sim, reeditaram o bicho e ele obteve altas vendas.
O coitado do romance teve que esperar o segundo lançamento do meu amigo, Levantado do chão, para se levantar de vez. Meio século. Violante, sua filha, nasceu com o lançamento de Terra do Pecado. O danado do romance deveria ter sido chamado de Terra das vírgulas. Nele, havia tantas delas que até hoje, tento relê-lo e não consigo entender quase nada. Diacho de narrativa mais diferente.
Em maio de 1991, em entrevista concedida por ele em Lisboa, disse que o título que havia posto no seu primeiro livro era A viúva. Pela troca do título passou a odiar o livro. Adorei Memorial do convento. Eita, chegou o homem. Ai, meu Deus!
– Senhor, foi o voo 985 procedente de Lisboa que chegou agora?
– Não sei!
Que mau humor! Precisava ele ter respondido assim com tanta rispidez? Mais um alarme falso. É minha ansiedade. Vou me sentar um pouco. Estou ficando cansado.
Jamais gostaria de ter estado na pele de meu amigo quando ele lançou, em 1991, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Alguns leitores possuem um olhar tradicional, religioso. Gostei de Claraboia, mas nem tanto de Caim. Ensaio sobre a cegueira é lindo! O azougado do meu amigo ainda achando pouco, disse que a Bíblia era um “Manual de maus costumes”. Ele gostava dos Salmos bíblicos. Ainda bem. Menos mal. Mas em contrapartida, em passeio por Roma, chegou a chamar o Papa bento XVI de cínico. Que absurdo!
– Senhor, poderia informar-me sobre o voo 985?
– Acabou de aterrissar.
– Obrigado, muito obrigado!
Enquanto o funcionário do aeroporto me olhava desconfiado, corri até o portão de desembarque. Daqui a pouco estaria abraçando o escritor famoso. O autor de tão belas frases. Sim, porque ele também foi um frasista. E como morreu assim, está condenado. Eita, pera, eu estarei recebendo para passar três dias em minha casa um homem que não é cristão? Ateu. Um homem condenado? Então ele está vindo do inferno? Do fogo do inferno? Meu Deus, que horror. Estou com muito medo! A confissão! terei de fazê-la antes da descida dele do avião. Vou à capela do aeroporto. Valei-me, meu Deus!
– Senhora, como é o seu nome?
– Bibi! O que você quer comigo? Cuido apenas da capela. Só atendo ao Padre Luís. Vá dizendo logo o que quer! Hoje nem é dia de Missa...
– Minha senhora, preciso falar com o Padre, com urgência.
– Se for algo grave, nem pense que eu vou acordar o Padre, Ele sempre dorme depois do almoço. Se for coisa séria, procure a delegacia do aeroporto. Capela não é lugar de resolver essas coisas não.
-Preciso me confessar, senhora, pelo amor de Deus...
Vi quando a senhora baixou o volume de um pequeno aparelho de televisão onde à sua frente sua filhinha assistia. A menina não gostou do que a mãe havia feito. Reclamou e disse: “bota essa coisa pra zoar, mãe, num tô ouvindo nada!”.
Depois de minha insistência e de esperar alguns minutos consegui me encontrar com o Padre a quem contei toda a história que estava se passando comigo.
– E quem é esse escritor famoso?
– Não posso lhe dizer padre, me perdoe.
– E por que não pode dizer?
– Espero um escritor defunto.
– Ora, ora, meu Senhor, acha que eu tenho tempo de ficar dando ouvidos a essas conversas malucas?
– Mas falo a verdade, Padre, Juro por Deus.
– Quem jura, mente. O senhor já viu defunto viajar de avião? Procure um médico. O senhor está delirando à luz do dia.
Pensei com meus botões: O português chegou e está me procurando. O que faço com aquele homem? Não me condene, Jesus, pois tenho que levar um ateu para minha casa. E saí correndo dentro do amplo saguão do Aeroporto Internacional do Recife. O povo me olhava espantado. De repente, enquanto corria desembestado, esbarrei na barriga de um velho alto, magro, vestido em um belo terno inglês, cheirando a um bom perfume. Trazia em uma das mãos uma sacola de couro preto. Quando olhei para cima, pude enxergar os olhos daquele ser magro. Era ele. Pronto! Não tenho mais o que fazer, disse para minha alma atônita. O senhor é o escritor? Ao que ele me respondeu afirmativamente. Sorria a zombar do meu medo estampado na cara. Compreendia que eu estava apavorado com ele à minha frente. Um defunto famoso. Um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Meu deus! Minha face reverberava o pavor extremo. O que deveria falar para aquele Nobel de literatura, o homem que deu o start para que a literatura em Língua Portuguesa fosse lida pelo resto do mundo? O que falar? cadê minha língua?
– Muito prazer! Preciso me apresentar?
– Não, claro que não. O senhor é o senhor e pronto! Eu estou vendo que é o senhor em carne e osso. Nem parece que morreu.
– Em carne e osso? Pegue em mim e confira se atrás desse paletó há matéria?
– Olhe, vamos devagar..., eu não estou preparado para tanto. O senhor quer me dizer que está aqui em espírito?
– Confirme você mesmo. Pegue. Certifique-se!
– Deus que me livre de uma hora dessas. O que é que o povo que passar por aqui vai pensar de mim? Faço isso não!
– E por acaso você acredita que há outras pessoas me vendo? Só você...
– Jesus de Misericórdia, e eu estou falando com uma alma? Ai meu Deus, por que o Senhor deixou que acontecesse uma coisa dessas comigo?
Danei-me a correr pelo saguão do aeroporto e o povo olhando e a polícia já desconfiada de que estivesse fugindo de algum flagrante. Quando cansei, já suando muito, sentei-me esbaforido numa poltrona de uma agência de viagem e pedi à recepcionista um pouco de água açucarada.
– O senhor está assim por quê? Foi assaltado no aeroporto?
– Antes tivesse, minha jovem, antes fosse isso...
– E o que houve?
– Saramago!
– Quem é Saramago?
– O famoso escritor português, não conhece?
– E daí, o que há de errado com o escritor que lhe apavora tanto?
– Ele chegou e está indo passar três dias lá em casa. Não posso levar um defunto comigo. Ele está vestido em um terno preto, mas, debaixo do terno não há carne nem osso. Estou apavorado minha senhora, o que faço?
– Olhe, preste atenção, o senhor precisa de ajuda de um médico. Está delirando. Tem que se tratar. Vou ajudá-lo. Chamarei o médico do aeroporto. Fique aqui. Não saia. Retornarei em dois minutos.
– Muito obrigado, minha jovem. Deus te proteja!
E quando dei por mim, acreditem os leitores, o médico chegou e se aproximou. As primeiras palavras dele foram suficientes para me levar ao desmaio. Ele disse:
- Aí fora há um homem alto à sua procura. Disse que vai lhe levar com ele. Disse que você sofre de um mal e que não dá muito valor às medicações que tem de tomar diariamente e que por isso surta muito.
– Quem falou isso para o senhor foi o Saramago?
– Não perguntei por seu nome. Mas vou pedir para ele vir até você. Aguarde.
Quando retornei do desmaio estava o pessoal todo da biblioteca pública de Évora ao meu redor, preocupadíssimos e desejosos para me fazerem mil perguntas. Só aí tomei consciência e me lembrei de que havia acabado de ler o último livro lançado em vida pelo autor português José Saramago: Caim!