LSD

Meu primeiro ano na escola foi terrível, todos os dias ao invés de ir ao recreio eu ficava na sala de aula ajoelhado no milho, esse era o castigo de quem era pego dormindo em plena aula. Eu não dormia na escola por odiar os estudos, mas por não ter conseguido pregar os olhos durante a noite, era só ficar no escuro que eu tinha as mesmas alucinações: Via um palhaço de ponta-cabeça andando na laje do quarto de um lado ao outro, um arco-íris sair da janela e descer perto da porta aonde vinha esquilos azuis sem cabeça escorregando por ele e desaparecendo, via o chão se tornar um rio e criaturas marrons e pretas cheias de tentáculos nadando.

Eu contava tudo que via para meus pais, eles nunca brigaram comigo por causa disso, pelo contrário, acharam que eu tinha um problema e que precisava de ajuda, primeiro me levaram numa igreja, vendo que não resolvia, meu pai juntou um dinheiro e me pagou uma consulta a um psiquiatra, depois de muita conversa e alguns medicamentos leves, o problema estava resolvido: Conseguia finalmente dormir, melhorei minhas notas na escola, depois do ensino médio cursei faculdade, e foi na faculdade que conheci uma garota chamada Ágata e nos tornamos grandes amigos.

Contei a ela as alucinações que eu tinha quando criança, ela disse que eu era sensitivo, mas com o passar do tempo minha mente tinha sido bloqueada pelo medo, alguns dias depois ela me deu uma dose de LSD em papel, dizendo que esta droga poderia me libertar, eu confiava nela então aceitei.

Depois de um mês tentando criar coragem para usar o LSD, resolvi usá-lo num lugar calmo, longe da cidade.

Contornei a montanha até ao lugar onde dava vista à paisagem, pus a mochila no chão, coloquei os fones de ouvido, acendi três incensos e peguei o LSD que estava na minha carteira, embrulhado em papel alumínio, desembrulhei com muito cuidado para não encostá-lo o dedo, coloquei-o embaixo da língua e me deitei de costas olhando com o binóculo os pássaros voarem, fiquei deitado por uns 30 minutos, movi um pouco a língua percebi que o papel de LSD não tinha se dissolvido, o engoli, me sentei e esperei mais uns 50 minutos, mas ainda não estava sentindo nada.

Já estava entediado e com fome, peguei o lanche natural e o suco de laranja que estavam na mochila e acendi mais um incenso, e se passaram mais 40 minutos, estava anoitecendo e o MP3 já tinha tocado todas as músicas e tocava a primeira música novamente, pensei em ir embora, mas acendi uma fogueira, peguei mais um lanche e deitei olhando as primeiras estrelas surgirem no céu.

Quando acabou a bateria do MP3 já tinha anoitecido, joguei-o de lado e peguei na mochila o último lanche que tinha levado, dei uma mordida e senti um gosto estranho, levantei o pão, a alface estava toda podre e cheia de larvas, o pão estava embolorado por dentro e fedendo, joguei o lanche no fogo e me deitei no chão de olhos fechados, pensei em pegar o saco de dormir na mochila, mas eu estava sem sono, continuei com os olhos fechados cantarolando os riffs da última música que tinha ouvido, até que subitamente me levantei ao assustar com um grito:

_Ahhhhh.

Era um grito longo e distante, de voz feminina, parecia um grito de susto, desses de mocinha de filme de terror, depois do grito veio o silêncio constante, olhei a minha volta tentando descobrir de onde tinha vindo, estava tudo calmo, eu estava sozinho lá, e perceberia se alguém se aproximasse alguns quilômetros.

Ouvi o grito pela segunda vez, só que desta vez estava mais perto. Saí correndo em direção ao grito, depois de correr uma pequena distância, meus pés começaram afundar, parei de correr e iluminei a sola do pé com a lanterna, achei que tinha pisado em lama, mas as solas estavam limpas, iluminei o chão e estava pisando na grama, a grama estava tão macia que parecia um colchão, continuei andando na direção do grito, a grama ia ficando cada vez mais macia, parecia até que estava derretendo, quando eu percebi que estava afundando até à canela resolvi voltar, fui para onde estavam minhas coisas, a fogueira estava quase se apagando, joguei mais uns galhos secos e o fogo clareou rápido todo o redor, vi uma sombra, era um vulto longe, joguei mais galhos no fogo para que a claridade chegasse até ele, então percebi que o vulto vinha se aproximando de vagar.

Era um homem de terno preto e chapéu, franzi os olhos e reconheci: Era o coveiro de que eu tinha medo quando era criança. Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não tinha morrido?

Não fiquei com medo, continuei parado de pé, esperando ele se aproximar.

Ele estava de pés juntos, se movia sem dar nenhum passo, como se estivesse deslizado lentamente, o braço esquerdo estava colado ao peito e a mão direita segurando o queixo, foi então que percebi que ele tinha um semblante anormal, tinha um olhar que não era humano, corri para pegar minhas coisas e ir embora, tentei pegar a mochila, mas ela estava derretendo, a alça se soltou e ela se esparramou no chão, peguei o MP3, mas ele vazou pela minha mão como sorvete derretido, tentei correr, meus pés começavam a afundar no chão e isso dificultou muito, olhei a minha volta e o cenário inteiro estava se derretendo como plástico no fogo, quanto mais o coveiro se aproximava mais derretia, ele já estava a uns 10 metros de mim, eu tentava correr, mas minhas pernas se afundavam até o joelho, estava quase sem fôlego quando consegui chegar até as pedras, elas estavam um pouco mais firmes que o chão, eu consegui escapar pisando nelas, corri o mais longe que pude, cheguei até uma floresta, estava sem fôlego e cansado, sentei ao pé de uma árvore e dormi.

E veio o som do grito novamente, acordei e tentei correr, mas minhas pernas já tinham afundado no chão, não consegui me mover, todas as árvores tinham se curvado, agarrei no tronco de uma delas que estava caindo próxima a mim, mas a árvore deitou-se ao chão, eu já tinha me afundado até a cintura e continuava afundando, virei o pescoço e o coveiro estava do meu lado, ele segurou meus ombros e ouvi o grito novamente, quase ensurdecedor, e ele me empurrou para baixo, afundei no chão e senti como se tivesse ido parar eu outra dimensão, nada que via fazia sentido, era como uma sopa de cores, uma vez as cores a minha volta formavam um padrão, outra elas se misturavam como se alguém as estivesse mexendo com uma colher, a cada cor que eu olhava eu sentia a vibração dela, algumas cores como o azul e marrom me davam sensações que eu gostava, outras cores como o amarelo me davam sensações meio incômodas, eu ouvia uma confusão de sons que ficava cada vez mais alta, percebi que estava ouvindo as cores, para cada cor que eu olhava eu ouvia o som dela, então fechei os olhos e tudo ficou em um silêncio absoluto, ficou tudo tão quieto que eu conseguia ouvir meus órgãos internos funcionando, eu pude ouvir o atrito do sangue correndo nas veias, e meus neurônios dando impulsos elétricos, como uma rede elétrica entrando eu curto-circuito.

Ouvi uma agradável música que me pareceu familiar, parecia Secret Garden, mas não consegui identificar que música era. Abri os olhos e percebi que estava caindo, o dia estava claro e o céu era cor-de-rosa, fui caindo entre pétalas de flores coloridas até que atingi uma plantação de flores de gelo, me levantei e vi que as flores transparentes cobriam uma área muito extensa, e as pétalas que caiam como chuva tocavam as flores de gelo e sumiam, peguei na mão uma das pétalas, ela era azul, eu a comi e tinha gosto de framboesa, peguei outra pétala, era vermelha e tinha gosto de morango, arranquei uma flor do chão, ela começou se debater entre os meus dedos até que virou uma borboleta de gelo que freneticamente batia asas, eu a soltei e ela saiu voando rápido, ao mesmo tempo todas as outras flores saíram do chão virando borboletas transparentes e voando, o céu ficou maravilhosamente encantador com todas aquelas borboletas brilhantes subindo, e muitas pétalas coloridas caindo entre as frestas amareladas dos raios de sol, formando um espetáculo que eu nunca tinha visto antes.

Saí caminhando e adentrei uma floresta de girassóis, escalei um deles que tinha uns 15 metros de altura, deitei sobre uma folha do girassol, e vi que um golfinho verde de duas cabeças voava de girassol em girassol comendo as sementes, quando ele chegou até mim ele falou comigo, as duas cabeças faziam a mesma coisa, falavam a mesma coisa ao mesmo tempo, mas as vozes tinham timbres diferentes o que dava uma sensação quase assustadora. Ele me disse que se chamava Vendra, falou que me conhecia em minha encarnação passada, disse morei numa cidade chamada Creta no sistema solar de Nédifer em Andrômeda, e me levaria até lá, subi nas costas dele e voamos até Creta em 4 segundos.

De cima avistei a cidade, o chão era branco, o céu era preto, as casas ovais e coloridas, enquanto estávamos olhando a cidade lá de cima eu disse:

_Acho que nós todos temos um propósito.

_Sim.

_Eu só preciso descobrir o meu.

_E para você descobrir foi necessário que você nascesse sensitivo, porém você se fechou e deixou de cumprir o motivo da sua existência, mas ainda dá tempo.

_Qual é meu propósito?

_A sua única missão é salvar a vida de uma criança.

_Que criança?

_Vem comigo.

Desci direto numa poça d'água, chacoalhei meus pés e vi que estava de sandálias marrons e uma roupa azul estranha, essa era a roupa local, o sol queimava minha cabeça, o dia era claro, mas o céu continuava preto sem estrelas, ao leste uma faixa avermelhada cruzava atrás das nuvens, eles a chamavam de "Escadaria-para-o-céu". Vendra me levou até minha antiga casa, apesar de não me lembrar de nada, me pareceu familiar.

Entrei na casa e deitei na cama, passou pela minha cabeça alguns flashes da minha vida naquele lugar, e adormeci.

Quando acordei os efeitos do LSD já tinham terminado, eu estava na minha casa em meu quarto, não me lembro de como fui parar lá, almocei e voltei para buscar minhas coisas, a mochila estava aberta e toda suja de areia, o MP3 e o binóculo estavam jogados no chão, juntei as coisas e fui embora.

Depois de alguns dias as alucinações voltaram, mas eu conseguia controlar elas, eu fechava os olhos e vinham as alucinações, era só eu me concentrar que elas começavam a fazer sentido, vi minha vida passada, assisti tudo que fazia naquela vida, vi uma briga que tive com outro homem, tentei matar ele a facadas, não consegui, mas deixei ele cego, agora ele renasceu e era uma criança doente, precisava de uma doação de medula, logo entendi que eu tirei uma parte dele (a visão) e destruí sua vida, agora eu precisava devolver uma parte de mim e dar a ele uma vida nova, essa seria minha remissão do erro.

Fui até ao aeroporto, olhei para a tabela vi a descrição de um voo brilhar como ouro, senti que era aquela linha que eu precisava pegar, voei até o Mato Grosso do Sul, entrei no primeiro hospital que vi, nenhum segurança me impediu de entrar, saí andando pelo hospital seguindo meus instintos e encontrei o menino, ele estava deitado e seus pais ao pé da cama chorando, pois ainda não tinham encontrado um doador compatível.

Elton Jt Veríssimo
Enviado por Elton Jt Veríssimo em 01/10/2014
Reeditado em 29/10/2014
Código do texto: T4983490
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