Complexo de Sísifo

Eu sinto seus olhos cansados, indecorosamente vigiando o auge das minhas frustrações cotidianas, no auge do "para que limpar o que vai voltar a se sujar um dia?" Ou então: "por que consertar aquilo que está destinado a remanescer em ruínas?" Cala-te, por um instante apenas, cale esses olhos inquietos, a visão deforma-se pelo cansaço. Cala-te, por um instante apenas, para que eu possa morrer por um instante apenas (e quem sabe assim pensar melhor). Ouço a voz que acorrenta as asas e me confina a essa velha terra, tão castigada e cotidiana...

O crime é a omissão e o castigo é a vida eterna; o crime é deixar o habitual ser alimentado ao passo que a inovação é negligenciada e o castigo é ter os olhos cansados de ver sempre as mesmas coisas e, não quero ser grosseiro, mas eu já pedi para que se cale, os ouvidos se cansam tanto quanto os olhos.

Estou em fase de experimentação e, por favor, não interrompa, eu já andei tanto e ainda sinto que há um longo caminho pela frente. Não, não é pretensão nenhuma, nem tampouco prepotência ou arrogância, eu simplesmente sei que isso não acabará tão cedo, seus olhos já devem estar cansados de olhar para os indícios, tanto que tu quase convencestes a ti mesmo que eles não existem. Típico.

Entretanto, eu já disse que era uma fase de experimentação; tudo o que tenho é uma teoria. Não sei bem ao certo, mas existe a possibilidade de haver um equívoco. Talvez isso tudo não passe de um devaneio infeliz. As vezes meu inconsciente me leva a ver coisas que não deveriam estar lá mas, lá estão. É difícil ignorar essa possibilidade, mas tenha em vista que é só uma possibilidade e, por via das dúvidas, cala-te, é melhor não arriscar, é melhor sempre correr a favor do vento, mesmo que pareça que está enlouquecendo. É natural ter dúvidas.

Mas, veja bem: a coisa toda não é tão polarizada, não é uma luta perdida entre o certo e o errado e não tens o direito de usar minhas teorias equivocadas contra mim, elas fazem parte do que posso compreender. A loucura que vês em mim é fruto dos olhos cansados, olhos incertos. Olhos imprecisos. Olhos equivocados. Volto a pedir: cala-te!

Estou cansado desse cansaço, estou farto da mesmisse e não tenho como comprovar meu experimento empiricamente e, também não tenho vontade de o fazer, apenas tanto faz; tenho quase certeza de que possa haver algum sentido nisso tudo, se preferes pensar que sou louco, tudo bem, faça assim então, a loucura é uma resposta cabível, é quase um contrato social atribuir o título de louco a quem tenta fugir do cotidiano. Não tenho nada material comigo, apenas sugiro que não digas mais nada.

Que eu seja sublime essência do meu ego: indeterminado.

De qualquer maneira; por que insistes tanto em sempre ver do mesmo? Não te cansas? Vossa vista deve estar ficando turva, distorcida, oblíqua... Qual seria o termo certo? Ah, sim: translúcida. Andas vendo muito daquilo que danifica a tua vista. Ah, sim, estou vendo agora que se trata de uma patologia incomum, algo que é genuinamente inusitado. Trata-se de um caso de sinestesia sensorial; o que me leva a conclusão que vossos ouvidos são parte da fonte da moléstia que lhe aflige os olhos. O único remédio é que te cales. A contraindicação de meu prognóstico é que talvez sejas encaminhado ao manicômio mas, aí, talvez seremos companheiros de clausura. E então poderemos nos abraçar...

Não sei bem ao certo todavia, sei que é na visão periférica que isso acontece. No canto da vista... E depois, some ao ser olhado diretamente, pela visão central. Simplesmente não está mais lá. Suponho que seja frustrante e cansativo passar por isso, concebes em tua mente incontáveis coisas que nunca estão realmente lá, mas tem quase certeza que estão. Mas este é o teu caso; quanto ao meu, só disponho de teorias que são alvo de tanto escárnio. O que está em questão agora são esses olhos... Demasiadamente tolos. E cansados. Olhos cansados. Não, não estou enlouquecendo, ainda não estou apelando, clamando que o mundo conspira contra mim. Cala-te! Cala-te! Cala-te! Tens a vista saturada de cotidiano, és incapaz de julgar a loucura de alguém senão a tua.

Enfim, que seja feita a vossa vontade. Não posso comprovar empiricamente, eu simplesmente sou alguém que confia na intuição, ela sempre me levou mais longe do que qualquer evidência material. Eu já tive os olhos cansados, sei bem do que se trata e já me curei, mas não tenho mais como te impedir de cair nessa cegueira cotidiana, só não diga que eu não tentei ajudar. Vá, e limpe o que se sujará amanhã e construa hoje as ruínas de amanhã. Faça isso sem calar a boca. São todos sintomas comuns à condição do Complexo de Sísifo.

Hanttu Monkeymann
Enviado por Hanttu Monkeymann em 03/07/2014
Reeditado em 24/10/2023
Código do texto: T4868395
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