Numa Noite Qualquer
III Eu sei que não deveria começar assim, mas me é desejoso e assim o farei. Foi numa tarde qualquer, mal consigo recordar quando. Não faz muito tempo, disso posso ter certeza. O escritório estava cheio. Eu, sentado na confortável poltrona, lendo o jornal, observando a porta sorrateiramente detrás de minha grande mesa. Ayira fechando as persianas, após servir-me um bom café. Mirela sentada no confortável sofá, localizado de fronte a parede oposta a qual minha mesa prendia-se, observando à estante – recheada de livros – enquanto apreciava um bom café qual só Ayira sabia fazer. Meus olhos fecharam-se, pesadamente.
II Meus olhos abriam fugazes, vagarosos. Mirela adentrava a sala com uma proposta de um novo caso, sem hesitar já estava de pé, apesar de sentir meu corpo extremamente pesado – toda minha movimentação continuava indiferente de tudo que havia vivido até ali. Corremos até o cemitério e lá estavam os dois, no mesmo local, sob a mesma chuva, parecia ser uma recapitulação de novela. Eu odeio repetir o passado.
I A cena a qual me refiro trata-se de quando encontrei Ayira. Vagava pelo cemitério, solitário, incompreensivo, buscando alguma sorte de conversa para a noite sem fim e lá a encontrei. Dezessete anos, ajoelhada, chorava tanto que a chuva perdia em quantia para suas lágrimas. Com nenhum esforço repousei a destra pouco abaixo de minha cintura, sutilmente inclinada, cobrindo a garota com meu guarda-chuva. Tão jovem, tão amorável, tão bonita, virou-se para mim, ergueu-se e abraçou-me nos deixando vulneráveis à água fria que os céus derramavam. Abracei-a em resposta. Não haveria mais limites para nossa cumplicidade, vós logo sabereis. Retornamos para meu apartamento, imediatamente acima do escritório, dei-lha banho quente e um roupão qual serviria de vestuário pela noite. Meu primeiro erro. Nosso primeiro erro.
II A chuva torrencial fazia daquela cena uma recordação triste. Eu vi a tristeza gritando do fundo da alma de Ayira, rugindo contra sua própria vida. Seus tão amados progenitores, agora transmutados em monstruosidades, aberrações quais destruiriam a vida humana. Eu não sei se deveria me importar com isso, realmente. Eu os matei. Ayira insistiu, meteu-se em meu caminho, recebeu um pequeno corte no braço, não havia preocupações. Ela viu seus pais mortos por minhas mãos, imagino sua dor, apesar de ser incapaz de me recordar dos tempos em que eu também guardava emoções humanas. Milena salvou-me da fúria angustiante de minha jovem cúmplice.
I Minha consciência me atacou constantemente naquela fria noite. Sentamo-nos em minha cama, Ayira apoiou sua cabeça em meu ombro, enquanto eu tratava de saborear um bom vinho. Nunca me esqueci da pergunta que ela me fez. Aquela porcaria ainda martela meu crânio. Quiçá martelará para sempre, não bem sei. Por que ela havia de desejar tanto? Eu nunca desejei a eternidade, mas naquele exato momento... Eu adoraria que a vida durasse para sempre.
II Eu continuei olhando, estarrecido, paralisado. Ayira correu e desapareceu no horizonte dos nossos olhares. Chorava tanto quanto, ou mais que a primeira vez. A vida pode ser muito sombria. Voltamos para o escritório, apenas eu e Milena. O escritório ficou silencioso. Silêncio de uma gravidade tão pesada e sufocante que mal conseguia ficar sentado. Noite após noite corremos atrás dela, encontrando apenas as vítimas de sua loucura, drenadas de seu fluido carmesim pelos pequenos furos característicos no pescoço. Eu não sabia o que fazer. Eu nunca soube, nunca estive preparado para isso. Evitava pensar que repetiria o erro de quem me fez assim. Talvez eu realmente tivesse de matá-la. Sentia meu corpo levemente suado.
I Na mesma semana ela já me servia seu ótimo café, dizia que aprendera com a mãe. Faz sentido, considerando o delicioso sabor. Sempre sorridente, estudava à tarde. Morava comigo, pela falta de casa e tutela. Nunca fui um bom exemplo, de qualquer forma. Concedido a vida eterna, na escuridão infinda da noite, devorando a essência vital dos humanos, eu não havia de ser um bom tutor. Raynar tornou-me assim, não gostaria de ver minha jovem companheira também uma criatura das trevas tal qual eu. Assim foi. Raynar apareceu numa noite de neve e muito vento, seqüestrou Ayira e a manteve em cativeiro na igreja aonde fizemos nossa única festa... Festa? Banho de sangue. Meu antigo mestre e amante tratou de ferir gravemente o objeto de minha proteção e afeto. Sem opções em mãos, vendo o sorriso dela com lágrimas nos meus olhos, desta vez, tornei-a igual a mim ou ao demônio santificado que me criou. Não! Ela é melhor que ele. Centenas de vezes.
II Encontramo-nos na floresta que cerca a maldita igreja. Ayira, agora dominada por seus instintos, gargalhava de meu comportamento protetor dos humanos, mal sabia ela que fora essa “fraqueza” que a permitiu sobreviver. Lutamos. Ela matou Milena impiedosamente, sem hesitar por só um momento. Deu cabo do corpo com muita facilidade e absorveu suas capacidades, aprendeu bem nas silenciosas noites de caçada àqueles quais não podem viver na superfície. Todavia, estou no ramo há mais tempo, perfurei o torso dela com minha espada. Um último espirro de sangue e...
III Abri os olhos, suando um pouco, dormi em minha confortável poltrona, enquanto Ayira questionava-me com seus olhos curiosos e sua beleza infinita. Milena já havia ido embora há muito, foi um dia tão tranqüilo que pude dormir sem perceber. Tomei um bom banho, ela me imitou. Deitamos nossos corpos imortais lado a lado. Encarou-me profundamente e proferiu a mesma questão da primeira vez. Em diferenciação, escutou, agora, o que gostaria de ter escutado cinco meses antes.
- Que tipo de relacionamento é o nosso? – Questionava a profundidade de minha alma com aqueles maravilhosos olhos azuis.
- Somos amigos íntimos, não? – Respondi rapidamente.
- Isso foi tão evasivo! – Fitava-me, indignada.
- Não te arrependes? – Tomei as rédeas do discurso.
- Estaria mentindo se concordasse, mas não é nada que eu não seja capaz de lidar e superar. Eu escolhi, conscientemente, partilhar a eternidade contigo. – Afirmou, com tom firme e determinado.
- Vamos dormir. – Beijei sua testa suavemente e cobri nossos corpos.