Amigo Tiago,
Grato pelo envio daquela longa lista de exemplos de tautologias ("vereador da cidade", "outra alternativa", "detalhes minuciosos" etc).
De fato, o humaníssimo fenômeno linguístico da tautologia, perissologia, pleonasmo ou redundância, enfeia e ilogiciza a frase. Mas, historicamente e dentro das vertentes linguísticas populares, a repetição, com outras palavras, do que acabou de se dizer, é um recurso de retórica na arte do convencimento, na esgrima argumentativa, na garantia de uma clareza de ideias, especialmente no campo dos negócios, que é o campo do Direito Real, não da teoria linguística pura.
Redundâncias tautológicas já salvaram muita gente de pagar multas ou até de ser presa. Às vezes, especialmente no subcampo dos contratos verbais, é melhor mesmo repetir duplamente duas vezes, e em dobro, para ficar bem clara a intenção do que se pretende que fique registrado na mente do interlocutor. É melhor do que fazer economia de palavras em nome da lógica argumentativa, mas depois permitir que o interlocutor alegue não ter entendido direito, não ter havido clareza no dito etc.
A linguística do mundo asfáltico e da feira, onde as palavras têm natureza jurídica de cláusula, portanto fazendo lei entre as partes, e onde é comum o chamado ouvido de mercador, é diferente da dos círculos eruditos e normativamente cultos.
E há também as tautologias de ideias e pensamentos.
Você sabe que eu sou um velho servidor de chás na biblioteca do tempo. Lembro-me de que um dia, há muito tempo atrás(ops!), pouco depois das 5h da tarde, já na saída da instituição e de passagem para pegar a charrete de aluguer, eu captei algumas frases de um caloroso debate entre quatro frequentadores da casa. Tentarei reproduzi-las para você:
Com sua voz forte e imperiosa, afirmou o professor e produtor de pensamentos Arthur Schopenhauer: “Só quem tira diretamente da própria cabeça a matéria do que escreve é digno de ser lido.”
Contra-argumentou, inspirado, o bibliófilo Mário Quintana: “Como o burrico mourejando à nora, a mente humana sempre as mesmas voltas dá... Tolice alguma nos ocorrerá que não a tenha dito um sábio grego outrora...”
Rebateu, inflamado, o tristimaníaco leitor Fiódor Dostoievski: “Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele”.
Sócrates, ainda olhando agradecido para Quintana, tentou arrematar: “O resumo de tudo é um só: conhece-te a ti mesmo”.
De fato, tudo é novo, tudo é velho. Há uma tautologia textual e suas especificidades. Há um círculo de saberes. Círculo, não. Talvez uma espiral de saberes. A gente gira, gira e sempre retoma o mesmo discurso, como se estivéssemos escrevendo e lendo um único livro universal. Mas a gente nunca deixa de escrever nem de ler, e os assuntos vão se justapondo, se aninhando, se concatenando e formando novos blocos articulados de conhecimentos sobre as coisas. Então eu acho que não há uma tautologia absoluta. A gente volta para os mesmos pontos, mas num nível acima, fazendo releitura das ideias antigas, mas empregando-as em novos laboratórios de pensamentos convergentes a solução de novos problemas. Há um gerativismo chomskyano sem fim, não na interconexão de elementos frasais, mas na de textos e situações de pensamentos. O tecido textual é multicamada, ainda que cheio de lacunas e de falhas de costura. O grande livro do pensamento humano nunca terminará de ser escrito. Em meu livrinho “Ler e Escrever e outras Introligências”, (que eu escrevi certamente compilando fragmentos textuais que já existem na biblioteca do tempo, fazendo plágios criativos, ainda que inconscientemente), eu suscitei o seguinte:
“Quase sempre o essencial está não clariceanamente nas entrelinhas ou nas entrelinhas das entrelinhas, mas em muitas linhas adiante mesmo, ainda por escrever ou por ler! Todo texto, por mais plurilinear que seja, é sempre o ícone de um hipertexto bem maior, sem letras, inacessível para ledores superficiais ou de uma mesma geração do autor. Muitos textos, em si, são o elemento referente na coesão intertextual anafórica, sendo que o elemento consequente só vai surgir décadas ou séculos adiante, da caneta de um autor que pode nem ter conhecido ou nunca ter ouvido falar do seu colega antecedente.”
Será que podemos ilar por derradeiro que a tautologia verbal se expande com o universo? Haverá um fim do pensamento? Uma conclusão geral? Uma única frase que resuma tudo? Se sim, que frase seria essa? Eu colocaria duas para disputar a final: “Conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates, Santo Agostinho e outros (talvez o primeiro a tê-la dito mesmo tenha sido algum pensador australopteco), e “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”, de Jesus. [E se, com o tempo, houver algumas dentadas de traças textófagas ou destautologizantes, e só restarem respectivamente o "conhece-te" e o "amai", talvez nada venha a ser perdido de essencial, concorda?]. Ou essas duas sentenças têm de trabalhar juntas, inexoravelmente, já que uma privilegia o conhecimento e a outra, o sentimento? Sei lá!
Enfim, a questão da roda de saberes é infinita e abrange campos o mais dessemelhantes possível (Física, Lógica, Matemática, Retórica, Cognitivismo, Literatura, Linguística, Política, Espiritualidade, Teologia etc), em que pese à sua integração interdisciplinar, principalmente nos tempos de hoje, em que se tenta unir tudo com tudo.
Então, o negócio é a gente gostar de jogar palavras fora ou dentro, o mais livremente possível de precisismos e preciosismos linguísticos. Por causa dos proibitivos gramaticais legais não devemos neurotizar nem deixar de sambar e brincar com as palavras, quer no ambiente culto ou erudito, quer na feira, quer no mundo asfáltico. Acho que o sentido da vida comunicacional está é nesse meinho aí. Ou não?
Vale lembrar que em língua vale tudo, já que ela é propriedade de todas as formações sociais, e cada uma faz com ela o que quiser. O importante é comunicar e fazê-lo da forma o mais clara possível para o interlocutor da vez.
Ademais, gramaticalmente, o que é proibido em um ambiente, é permitido em outro. Não há uma gramática universal, nem no tempo nem no espaço, muito menos entre as culturas. É sempre questão de adequação, de conveniência, de interesses, de oportunidades, inclusive emocionais, escolares ou acadêmicos, mercadológicos...
No geral, devemos sempre refutar o preconceito linguístico, especialmente quanto às tautologias, que têm mais utilidades para o fechamento de entendimentos do que as fórmulas lógicas da gramática normativa pura.
[Essa minha postura linguístico-conciliatória talvez ainda seja resultado do tratamento psiquiátrico que fiz. É que, inicialmente, eu ingressei na biblioteca como caçador e exterminador de traças da seção de livros raros. E fiquei nisso durante muitos anos, cumprindo fiel e sorridentemente meu dever funcional. Mas, depois de tanto ver e até interagir com milhões de traças, eu acabei por me tornar uma delas. Kafkamente, virei uma traçona, a mais destruidora de textos da instituição. Quando não conseguia destruir nem traçar certo texto, por achá-lo bem consistente, tentava estruir e troçar, desconfigurar, parodiar, dilacerar, confundir, arremedar, desfazer dele de todo jeito que podia. Tive de me tratar com um psicotisanurólogo (psiquiatra de traça comedora compulsiva de livros), principalmente quando comecei a consumir a mim mesmo, “literalmente”.
Quando voltei da licença, quase todo desmetamorfoseado, mas não de todo destraçalhado, sofri readaptação. Passei à função de servidor de chás dos frequentadores, tendo de comprar também, todo dia, ainda fresca, a matéria-prima das infusões.
Desde então, habituei-me a não desfazer mais de nenhum texto, seja livresco ou até mesmo de santinho de político em época de eleição. Respeito tudo o que é escrito. Frase de para-choque de caminhão? Venero!
E, como cai bem para todo mordomo, venho trabalhando sempre de fraque (em verdade, para encobrir com suas longas abas os apêndices caudais laterais que remanesceram do tisanuro que fui). Nem passo perto de livros fechados há muito tempo. A tentação ainda é grande, ao pé da letra. Ademais, não tenho mais a força nem a disposição biblioclasta de que fora portador. Libertei-me da vaidade intelectual de ter sido um grande traçador de livros. Tenho andado humilíssimo. Agora só o que faço é sorrir discretamente, quando ouço algum novel frequentador tecer loas sobre algum clássico que sobreviveu às minhas dentadas. Emocionalmente, só me restou esse traço da traça.]
Há, sim! Para você, que um dia desses se perdeu na biblioteca e andou procurando por um tempão uma saída (lembra?), seu amigo Jorge Luís Borges mandou um recado. Ele mandou lhe dizer que “a Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.”
Bem, agora irei até à feira. Hoje é dia de erva-doce no chá das cinco.
Abraços! Apareça para um interlóquio ao lusco-fusco!