Círculo Redondo

Estava em casa, aproveitando a fugacidade que me traz o simples. Dei algumas voltas pela sala, esperando que um túnel subterrâneo aparecesse e me engolisse para outra dimensão. Vivo a vida como quem desfruta do deslocar de um pêndulo quebrado; ali, num espaço contido e imprevisível, movimentando-se adimensionalmente em uma direção e, sub-repticiamente, em outra.

Deitei-me no chão: meu maior aconchego. Olhei o céu que construí com minha mente. Estava muito longe de mim, no teto de minha sala. Senti várias cobras se aproximando, oriundas de um furo na minha consciência, que esqueci de tampar, deixando a profundez se alastrar pelo resto de minha alma e atingir o ninho das mais venenosas. Levantei e, mais uma vez, percebi que estava sozinho. Peguei minha bicicleta e dirigi-me à casa de um amigo. Estava a me esperar. Cheguei em sua casa. Fui recebido muito bem, logo sendo convidado a entrar. Casa simples, que nem a maneira como levava a vida. Recebi dele duas opções de bebida. “Chá ou café?”. Aquela oferta me destruiu.

Observei suas mãos esticadas, suportando o peso do mundo que compunha dois cálices com líquidos heterogêneos. Aquilo doeu. Naquele momento, eu dominava o espaço. Era tão mestre da situação quanto um imperador dominando sua população. Meu coração, como uma pilha de relógio, houvera aguentando meus dilemas durante muitas linhas do tempo. A diferença era que, naquela hora, eu não estava sozinho. Dentre duas escolhas, por que só uma? Vi-las como minha vida. Vivi novamente as cobras que me cercaram no momento de inquietude que senti no chão de minha sala. Vi a cratera áspera que se estendia, chegando perto de mim com uma sede de carne. Eu não iria cair tão fácil. Olhei para o rosto dele. Parecia simpático, apesar de eu saber a realidade por trás daqueles olhos orgulhosos. Ele me deu duas escolhas. Como eu podia recusá-las?

Escolhi o chá. Uma bebida bastante agradável, que me recompôs naquele momento. Conversei com meu amigo, que contou ótimas coisas que haviam acontecido com ele. Conseguiu um emprego, ganhou muito dinheiro. Arranjou uma bela mulher, de corpo branco como a pureza, e lindos seios, que despertaram rapidamente seu desejo. Contou- me também que foi presenteado com uma nova casa, herdada do seu avô. Orgulho era só o que eu via em sua expressão. Orgulho e ambição. Vi algumas veias avermelhadas surgindo em seus olhos, algo que nunca havia visto antes. Contou-me que ele e sua mulher pretendiam casar e ter um filho. Já havia possuído-a. Aos poucos, parecia se desatar da teia de aranha em que se ininhou por tanto tempo.

À medida que ouvia seus relatos, quase que como uma narração épica, eu me sentia frustrado. As coisas estavam indo muito bem para ele. Vi-me novamente no dilema do chá e do café. A meu ver, o destino lhe deu os dois. Cinco horas da tarde e alguns minutos. Devia voltar antes que anoitecesse. As vilas do Recife são perigosas, e não podia tardar- me. Despedi-me do meu amigo, que me acolheu num forte abraço. Um momento tão pleno e forte. Achei-me só ali.

Voltei. Era tarde, e o belo sol de melancolia e paz acobertava os prédios da cidade, começando sua usual melodia compassada, quando todos retornam, sentam em jardins utópicos e abrem seus livros de contos e poesias, ao gosto de uma bebida quente. Eu já havia tomado a minha. Retomei os olhares do meu mundo privativo, confinado em telas de abelhas, observando a vida existir e esmaecer. Onde estão os répteis escamosos e de expressão amarelada? Vi uma nova estadia. Não me lembro, mas acho que passei meia hora sentindo o peso dos meus pensamentos.

Não acreditei, mas quando olhei para o lado, vi meu amigo. Logicamente, tomei um susto. Espera, quem sou eu para falar de lógica? Achei estranho, pois acabara de me encontrar com ele. Tentara juntar palavras apropriadas num molde de frase para indagar o motivo de sua presença ali; inusitada, surpreendente, inesperada. Antes de o fazer, fitei seus gestos, que me encaravam com uma expressão de orgulho, com lágrimas nos olhos. Vi felicidade ali. Não por uma mulher bonita e sedutora, por uma nova casa ou por oceanos de dinheiro, mas uma felicidade inédita, que o acometia pelo simples prazer de me olhar naquele momento. Subitamente, estava eu deitado no chão, mais uma vez. Aproximou-se o meu amigo, lentamente. Tac, tac, tac. Sentia seus passos cada vez mais profundos em meus ouvidos. A cada estalar, meu coração acelerava mais. A cada estalar, me sentia mais vivo.

Deitou-se ao meu lado, fitando, junto a mim, o céu infinito que modelava nosso universo. Tentei indagar algo, gritar, mas só eu ouvia minha voz. E nem me importava. Sua presença ali não me espantava mais, não gerava em mim nenhuma dúvida, nenhum anseio ou ressentimento. Era como se eu já o esperasse ali. Uma vez deitado, continuou se aproximando. De repente, seu braço encostou no meu e, espantosamente, virou um só. Dois em um. Um em um. Olhei estarrecido. Ainda encarando o alto espaço, continuou se aproximando. Seu corpo penetrou todo o lado direito do meu. Nossos corações se encontraram ritmados, numa sintonia angelical; divina. Não conseguia me mexer. Ele continuava com seu olhar orgulhoso e satisfeito, contagiando o meu. Uma inocente lágrima banhava em linha reta seu rosto. Éramos uma bela aberração.

Sua cabeça penetrou a minha, e foi quando eu percebi que meu existencialismo estava encobrindo meu esclarecimento. Vi, ali, que houvera alienado a mim mesmo com insegurança, dor vinda do vácuo. Enchi meu passado de sangue, que nunca foi derramado. A minha vida não havia sido deixada em destroços, mas as folhas das árvores por onde passei seguiram minha caminhada ao pôr-do-sol com todo o verdor, sempre renovando os caminhos que escolhi seguir. E eu fui o único que não percebera. Fui mestre das minhas ações; das minhas formas, e regi meu espetáculo com clamor em todos os atos. Minha vida havia sido mais bela do que minha pseudo-condição de ver cobras, buracos e espaços vazios, que eram só o que meus olhos insistiam em assimilar. Chá ou café? Sempre tive os dois. O destino tardou a me mostrar.

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Gabriel Coêlho
Enviado por Gabriel Coêlho em 27/10/2013
Reeditado em 27/10/2013
Código do texto: T4543584
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