Quanto custa a liberdade?
Anna estava irritada com a velocidade da conexão de internet que naquela noite estava mais lenta que fila de banco.
_ Droga,esse treco não pega por nada. Logo hoje que o Gustavo está on line,não acredito! Isso é muito injusto. Cara,só pode ser esse fio...
Anna mexeu tantas vezes no cabo preso ao roteador que acabou quebrando e a internet definitivamente não funcionou mais.Sem ter o que fazer e sendo quase uma hora da manhã,o que lhe restou fazer foi deitar e dormir,e como havia acordado cedo no dia anterior e estava muito cansada,foi o que fez e logo adormeceu. Anna dormiu em sua cama quente,confortável, em seu quarto repleto de roupas, de sapatos e tênis de marca,pôsteres de seus artistas favoritos e livros variados que nunca parou para ler,e acordou numa cidade escura,úmida e barulhenta,cheia de pessoas "bizarras" e mal-encaradas. Vestindo um trapo cinza que mais parecia um saco de batatas velho,achou estar sonhando,e antes mesmo de entender,foi arrastada por um grupo de pessoas que andavam em passos apertados e ligeiros,demonstrando uma ansiedade fora do comum. Um burburinho de que havia alguém esperando para ser executado a fez perceber que se tratava de uma passeata assustadora,rumo a um julgamento importante. Movida por uma curiosidade juvenil e sem muitas opções,seguiu àquelas pessoas esquisitas e obstinadas.
Percebeu estar perto quando ouviu gritos que se intensificavam a cada passo, e teve a certeza de que havia chegado quando se deparou com uma praça lotada de gente,e se assustou ao ver algo parecido com um palco que, ao invés de abrigar atores encenando um espetáculo,servia de cenário para homens mascarados,intitulados carrascos. Havia também uma pessoa com o rosto coberto,mãos e pés amarrados e uma capa preta cobrindo parte de seu corpo. Era assustador tudo que se passava em sua cabeça naquele momento. Ela não podia acreditar que presenciava um julgamento em praça pública,sem chance de defesa à vítima,e que a levaria à morte.
Alguém da multidão fitou os olhos em Anna e gritou enfaticamente que ela deveria estar lá também,sendo julgada. Um frio aterrorizante subiu pela sua espinha e como um filme de terror, viu tudo que antecedera àquele momento,e sem conseguir esboçar qualquer tipo de reação teve uma certeza: eu sei porque estou aqui.
Anna lembrou de uma menina que não tinha mais do que dezesseis anos,presa num quarto escuro,frio e silencioso. Lembrou também que no canto desse quarto havia um candelabro, e ao lado um livro,e que a menina correra para aquele canto,e com uma fome jamais vista,devorou cada palavra ali contida. A cada palavra lida,uma parte daquele quarto se iluminava, e toda mobília empoeirada ganhava vida. A menina não se sentia mais só. As luzes ficaram tão fortes e um perfume doce pairava no ar. Todo aquele encantamento que Anna sentia,toda emoção e beleza jamais vista antes,foi interrompida por três soldados que arrombaram a porta do quarto e gritaram em coro: - nós a achamos! Tomem cuidado! Ela fez algum tipo de feitiço,há luz para todos os lados. No rosto da menina havia um sorriso reluzente que nem mesmo a presença daqueles homens conseguiu tirar. Não havia medo,toda aquela beleza inimaginável de luz e cores,num lugar que só conhecia escuridão,deu àquela menina a liberdade que sonhara toda sua vida. Anna lembrara de tudo,e tudo foi esclarecido em sua mente.Ela entendeu finalmente o porquê de estar ali. Após ter sido identificada pela multidão,Anna foi levada por dois homens mascarados para o centro do palco.
Um homem alto,vestindo um traje impecável se aproximou e disse: - estamos aqui hoje,porque alguém subestimou meu governo. Alguém esqueceu que existem regras aqui e que devem ser respeitadas. Todos vocês sabem que meu governo é para todos e se respeitarem os limites aqui impostos,viverão em paz. Apontou para a menina e continuou: - Pois bem,essa menina achou ser melhor que todos aqui presentes e além de esconder,abriu e leu um caderno cheio de folhas escritas,algo a que chamamos de livro. Ela fez magia com o seu conteúdo e deve ser punida.
A multidão gritou em um único som: QUEIMEM-NA...QUEIMEM-NA...QUEIMEM-NA...
Naquele momento,um dos soldados arrancou o capuz,revelando assim seu rosto. Nessa hora,Anna sentia tanto medo que ficou de olhos fechados. Anna não imaginava o que estava prestes a ver,e ao abrir os olhos,viu sua própria imagem refletida na menina,e então não sentiu mais medo. Sentiu-se livre finalmente. Sabia o que deveria ser feito. Anna olhou para aquela multidão que há tanto tempo andava cega e perdida,fechou seus olhos por alguns segundos e ao abri-los novamente,estava no lugar que deveria estar. Anna era a própria menina,a espera de sua sentença.
Homens com tochas de fogo entraram e alguém na multidão gritou que ela dissesse sua últimas palavras. O homem alto,que antes fizera o discurso acerca de seu governo e falava sobre limites,disse para Anna: - vou te dar um minuto,exatos um minuto,para que peças clemência e se arrependa de seus atos,e poderás ser perdoada. Nesse momento a menina Anna fitou seus olhos nos dele,e ao desviá-los para a multidão disse: - hoje,ironicamente,presa aqui,à espera de minha morte,sinto-me livre como jamais me senti em toda minha vida. Vocês prendem um corpo,sentenciam uma vida à morte,mas jamais poderão prender um espírito livre. Eu era cega como todos vocês,e hoje sei o que significa liberdade,nunca poderei voltar a escuridão da minha vida,morrendo dia a dia numa vida vazia. Não posso me arrepender de ter ganho asas e poder voar...me sinto livre,livre,livre,hoje estou livre e o sol sorri para mim.
Após suas últimas palavras,o julgamento chegaria ao fim,e o que tinha que ser feito,foi feito.
Como num último suspiro,Anna acordou em seu quarto,respirou aliviada por estar viva, e movida por um sentimento de liberdade,reparou que em seu quarto havia portas que poderiam levá-la para um mundo novo,colorido e iluminado,então deu um salto da cama e parou em frente a estante cheia de livros nunca lidos por ela,sentiu um aroma doce pairar no ar, e percebeu que também desejava ser livre.