CORPO GUARDADO
Maltratada pela noite exaustiva de trabalho na boate, Míriam decidiu passar parte da manhã no Parque Municipal, um oásis no sufocador centro de Belo Horizonte. O dia estava perfeito, exibindo o sol que brilhava teimosamente entre as nuvens. Ficou horas sentada à beira do lago. O olhar sublime se perdeu no tempo, acompanhando o movimento calmo das águas. Mas uma voz, a princípio distante, veio aos poucos adquirindo intensidade e quebrou o invólucro de sua viagem solitária:
– Posso sentar do seu lado?
– À vontade, mas não me incomode.
– Esse olhar faminto esconde muita amargura, hein?
Libertando-se do cárcere emocional e fitando o desconhecido com maior atenção, acalentou seus nervos com um prazer surpreendente que lhe surgiu de dentro. Conseguiu captar nas feições do outro um misto inexplicável de sinceridade e ternura. E o tempo resolveu paralisar-se para a jovem, que tinha seus olhos negros e tristes fixos naqueles olhos verdes e brilhantes. E dominada pelo encanto, levou as mãos à face do homem, acariciando-lhe com delicadeza os pelos curtos e dourados da barba tão impecavelmente cultivada. Sussurrou:
– Você me faz bem...
Ele nada respondeu, estava também maravilhado com a jovem. Permanecia inerte, acolhendo as carícias e apreciando cada minúcia daqueles traços privilegiados.
Alguns minutos se fizeram passar. Finalmente, Míriam, como se despertasse de um delírio, pôs termo ao silêncio imposto pelas circunstâncias:
– Meu Deus, me desculpe!
– Você seguiu seus impulsos. Isto é nobre.
Ela, deliciada com a voz grave e mansa emanada dos lábios perfeitos do moço, que tinha olhar límpido, tranquilo e braços fortes, perguntou:
– Qual o seu nome?
– Luís.
– Eu sou Míriam.
Neste exato momento, dezenas de passarinhos vermelhos e cantantes se aproximaram do belo par e, alvoroçados, revoaram ao seu redor, como se festejassem a iluminada união. Pousaram em seus colos, seus ombros e depois foram embora, cantando sem parar. Por uns minutos, mulher e homem se viram nos ares, voando com aqueles seres lindos e delicados.
Entre algumas lágrimas que teimaram em surgir, Míriam contou sua história a Luís, que a ouvia atento e solidário; da infância de descaso por parte da mãe solteira e frustrada, do estupro coletivo que sofrera aos onze anos, da lida angustiante de prostituta, da inexistência de uma casa digna para morar. Ao final do relato, ele não conseguiu dizer um monossílabo sequer de conforto ou ânimo. Só após alguns segundos a fitá-la com expressões de indignação e inevitável piedade, pôde falar algo:
– Quer morar comigo?
– Você mal me conhece!
– É como se já nos conhecêssemos há anos.
– Você é mesmo especial!
Míriam desviou-se dele, levantou-se, colocou-se diante do lago, com as mãos abrigadas nos bolsos do jeans. Expressões e atitudes daquele homem transmitiam à sua intuição sinais de sinceridade, de confiabilidade, embora a razão impusesse cautela. O desejo e o medo se entrelaçaram na jovem num combate desvairado, subjugando-a às suas extremas forças. Pôs-se a correr como louca, fugindo de Luís e de si própria, mas ele a alcançou e beijou-a. Silenciaram-se por alguns instantes. Olhavam-se, veneravam-se mútua e profundamente. Era como se aspirassem o mundo em grãos, alheios ao entorno inexistente. Beijaram-se mais e mais, como saciando uma sede de séculos. Cabelos, faces, lábios e peles à mercê de toques apaixonados. Entre os sôfregos carinhos, conversaram:
– Quero que vá morar comigo sim.
– Apesar da vontade, não sei nada sobre você. É loucura!
– Loucura é você não ir. É você, sei que é você a mulher da minha vida. Está resolvido, você vai.
– Vou.
Diante da confirmação de Míriam, Luís portou-se feito um menino, pulando de alegria e a cobrindo de beijos. Ali se fazia presente a solução para a angústia que o corroía mais a cada passar de hora. Depois da euforia, resolveram ir para casa. Passaram na pensão onde Míriam se hospedava; ela apanhou suas coisas e acertou as contas. No caminho, permaneciam trocando declarações e promessas:
– Quero apagar de sua memória todo o sofrimento, Míriam. Sinto-me responsável por você. É estranho, é deliciosamente estranho. Esta responsabilidade não incomoda, não me pesa nos ombros. Sinto um prazer que jamais senti!
– Pois eu me sinto dona da felicidade neste momento! Mas foi tudo tão rápido, tão incrível! Quero conhecer mais sobre este homem que me devolveu a vida, que se apropriou de mim sem pedir consentimento. Quem é você?
Luís suspirou, satisfeito com o que acabava de ouvir. Seu olhar exprimia certa malícia natural, um instinto humano de orgulho, de vaidade. Aproximou suas mãos às mãos de Míriam, acariciando-as levemente com os dedos e o até então misterioso homem iniciou o relato de sua vida...
Luís de Freitas era artista plástico. Seus pais possuíam dinheiro e puderam proporcionar-lhe infância e adolescência sem limitações materiais ou afetivas. Sendo filho único, seus desejos eram prontamente realizados. Cresceu como um príncipe, envolvido em conforto, mas os padrões morais com que fora criado proporcionaram-lhe um caráter reto, coeso, ideal. Num fevereiro qualquer, ao voltarem da viagem de férias, ele e seus pais sofreram um terrível acidente automobilístico. Do carro, só a lataria esmagada... Da família, só Luís... Tinha então dezessete anos. Após tal golpe, o rapaz fechou-se por completo. Não se interessava mais por festas, passeios com amigos, namoros. Sua existência tornou-se um grande vão escuro. Muito aos pouquinhos, dia após dia, ele se foi despertando novamente para a vida. Descobriu as artes plásticas e seu talento para a pintura. Criava compulsivamente! Óleos sobre telas de cores tristes e cenários angustiantes, encarcerados nos limites quadriláteros... Foi amparado pelo único membro disponível em sua pequena família: Vicente, um primo rico e poderoso, apesar de muito jovem, que se tornou seu tutor. A pouca diferença de idade, um seis anos apenas, ajudou-o bastante, pois além de um guardião, conseguiu também um amigo para partilhar a juventude. Vicente o incentivou nos estudos de belas artes e investia em sua carreira, com patrocínios e exposições. O devotado primo dedicava toda sua vida a Luís, protegendo-o como a um filho; sequer casou-se. Mas ao passar dos anos, aquela dedicação em demasia acabou por sufocar o artista sobremaneira. Sentia-se como uma extensão do tutor, nada podendo fazer sem a sua aprovação. Sutilmente, Vicente cobrava-lhe sob várias formas pelo bem que lhe fizera, como se quisesse em troca sua própria liberdade. Apesar de tudo, Luís sentia ternura e respeito por ele; afinal, foi seu inseparável companheiro, estando presente nos momentos mais cruciais. Contudo, tinha consciência de que não poderia anular-se. Decidiu desprender-se lentamente, o que não estava sendo fácil, pois sua dependência, àquela altura, era até mesmo financeira. Tudo do que precisava, desde materiais de pintura até um lanche na esquina, derivava de Vicente. Deixou-se dominar por completo pelo homem obcecado que o controlava, passo a passo. Luís morava num confortável apartamento, única herança que restou dos falecidos pais. Na verdade, a assistência absoluta concedida pelo primo não mais provinha dos seus bens, que relativamente limitados, foram consumidos com o tempo.
Ao entrarem, logo se beijaram, entre arrepios, entregues à delícia alucinante. Faces, ombros, ventre e os seios lindos da mulher acolheram os lábios do homem que, desbravadores, exploravam aquela extensão privilegiada de prazer em cada minúcia. Em retribuição, ela acariciava-lhe, com as pontas suaves dos dedos das mãos, os pelos dourados do peito robusto, desejando, enlouquecida, seu sexo. Fluíram mel pelos poros, lamberam-se, fartaram-se do extasiante doce de seus corpos. E se amaram longa e maravilhosamente, até selarem o momento num gozo intenso! A ex-profissional do sexo pôde finalmente sentir o verdadeiro significado de “fazer amor”. Apoiou-se nos braços do homem e adormeceram, deitados no tapete.
Míriam e Luís foram pressionados a retornar da viagem mágica, a partir do toque da campainha. Vestiram-se bem devagar, com esperança de que o visitante desistisse da espera, o que não aconteceu. Luís estava certo de que era Vicente; afinal, sua única possibilidade de visita em pleno domingo. Mal a porta se abriu, recebeu uma repreensão pela demora em atender:
– Pensei que ficaria um século esperando!
– Se acalme, Vicente; não exagere!
– Desculpe-me. De fato exagerei um pouco. Ando meio tenso ultimamente. Mas como está? Está bem? Não está precisando de nada? Há dias não me procura! Fiquei preocupado!
– Estou ótimo! Melhor, impossível...
Nesse momento, Míriam aproximou-se, acatando o sinal de Luís, que a chamou. O visitante, com olhos esgazeados, interrogou em tom agressivo:
– O que significa isso?
– Sou eu quem pergunta, o que significa isso? Não admito que trate assim quem está sob meu teto! Precisa impor a si mesmo certos limites! Bem, esta é Míriam, nos conhecemos há algum tempo e...
O homem, mais equilibrado e não menos espantado, desculpou-se e estendeu a mão à mulher. Míriam, muito sem graça, retribuiu. Luís continuou:
– Finalmente encontrei a mulher de minha vida! Jamais, jamais conheci alguém que me fizesse tão feliz!
Demonstrando a preocupação paternal de sempre, Vicente pediu que ela se retirasse, alegando necessitar de uma conversa em particular com seu primo. Míriam, com um sorriso artificial nos lábios entreabertos, atendeu.
– Luís, não estou entendendo nada! Como pode trazer uma desconhecida pra seu apartamento e ainda se dizer perdidamente apaixonado? Você só pode estar louco! Não há o menor sentido nisso! Você nunca agiu assim, está se arriscando, não se pode confiar tanto em qualquer uma!
– Míriam não é qualquer uma! A cada minuto que se passa, aumenta minha certeza quanto a isto! Não sou nenhum inconsequente, me incomoda o jeito como me trata. Tem razão quando diz que nunca agi assim; nunca agi assim porque nunca me senti assim, tão... completo! Sinto como se a conhecesse por muito tempo. É como se já esperasse cada atitude, cada reação!
– Luís, dê tempo ao tempo, isso vai passar; é simplesmente impossível que o que me diz que sente seja real, definitivo!
– Se eu deixar de sentir o que sinto agora, minha vida perderá o sentido! Antes era possível viver com o coração congelado, anulado pra algumas emoções, porque desconhecia o amor. Mas hoje, não creio que consiga prosseguir sem ele.
Um tanto consternado por tudo o que ouviu, Vicente retirou-se abruptamente, batendo a porta com fúria! Míriam saiu do quarto, dizendo:
– Ele não gostou nem um pouco desta situação, né?
– É natural que se preocupe. Mas essa resistência vai passar.
– Espero que tenha razão.
Abraçaram-se...
O pedante protetor os fazia visitas regulares e impertinentes. Quase todos os dias! E não media esforços para demonstrar, da maneira mais crua possível, o descaso com a presença de Míriam. Decidiu não se pronunciar mais sobre o assunto, na esperança de que toda aquela ilusão de romantismo fosse passageira. Não se conformava em ver o primo tão vulnerável aos encantos da jovem belíssima – isto não podia negar – e sofria demais! Talvez rondasse ali um sentimento desmedido e incontrolável de posse exclusiva, que beirava a insanidade. Queria ser o único, o responsável, o detentor de todas as emoções, todos os sentimentos do artista. Evitava dirigir a palavra à Míriam, cuidando para que Luís não percebesse. Conseguia administrar ultrajes sucessivos com sutileza impressionante! Estes atingiam o alvo com precisão cirúrgica, sequer resvalando no coração cego e apaixonado de seu protegido. É que havia nele um talento raríssimo para lidar com as palavras. Com a mesma frase, conseguia aniquilar uma pessoa e, simultaneamente, congratular outra, sem denunciar a menor ambiguidade na fala.
Míriam já não aguentava mais aquelas visitas chatas:
– Ele quer nos vigiar.
– Não, está enganada. Talvez queira conhecê-la melhor, faz parte do zelo que tem por mim.
– Não. Você é homem feito, não faz sentido esse exagero.
– Concordo que às vezes são espantosos os seus excessos, mas não sei como me livrar deles. Não posso simplesmente descartá-lo de minha vida; afinal devo-lhe quase tudo. Não seria justo. Mas não se aflija, encontrarei uma saída.
Ficou pensativo por alguns minutos, até que apanhou o interfone e comunicou-se com o porteiro:
– Por favor, quando o Sr. Vicente chegar, diga-lhe que viajamos e que desconhece destino e data da volta. Instrua também seus substitutos.
Míriam emanou um sorriso moleque. Bem sabia que aquela atitude não seria propriamente uma solução. Até mesmo se espantou com a imaturidade do seu amado. Por alguns instantes, conturbou-se com uma preocupação no mínimo coerente: como assumir e crer num relacionamento duradouro, se havia ali, diante dos seus olhos, uma personalidade despreparada e submissa que mais parecia ter vivido numa redoma de ilusões? De qualquer forma, tiveram alguns dias de paz. Mas não contaram com a insistência exagerada do antigo tutor.
Manhã de domingo. Desconfiado da farsa e ciente dos passeios costumeiros do casal à Praça da Liberdade, Vicente estacionou o carro numa rua próxima ao prédio em que eles moravam, ficando à espreita. Quando se aproximaram, molestou-os cinicamente:
– Vocês por aqui? E então, como foi a viagem?
Acompanhou-os ao passeio e as constantes visitas voltaram a acontecer. A mulher tentou aproximar-se do sujeito, para amenizar o constrangimento de Luís. Desdobrava-se em esforços para agradar o poderoso homem, desfazendo-se em gentilezas e desconsiderando certas ofensas maquiadas que por vezes via-se obrigada a ouvir. Viver com Luís era tudo o que queria da vida e valia o sacrifício. No mais, comparando-se ao que já havia sofrido, as agressões recebidas eram plenamente superáveis. Era o preço que pagava por seu alívio interior.
Manhã de terça-feira. Míriam estava sozinha em casa. Preparava o almoço do amante, quando a campainha tocou. Ao atender, deparou-se com a figura altiva e arrogante de Vicente (ele nunca permitia ser anunciado com antecedência). Muito espantada, convidou-o a entrar e assentar-se; porém só foi aceito o primeiro convite:
– Serei breve. Quero que saia da vida de Luís!
Sentindo um calor súbito e intenso, que lhe subiu feroz pelo corpo até instalar-se em definitivo nas faces, com voz vacilante e pausada, ela respondeu:
– Por que deveria atendê-lo?
– Sei que já penou bastante e ambiciona uma posição mais digna na vida. Pois bem, posso proporcionar todo o conforto do mundo, todo o dinheiro, tudo o que desejar! Roupas, joias, viagens, luxos, respeito, vingança contra seus malfeitores, tudo! Poderá finalmente sentir-se como um ser de fato, que ocupa espaço na Terra! Pra isso, basta que deixe meu primo em paz!
– Não entendo por que essa resistência pra me aceitar! Faço ele feliz e deveria se sentir também feliz por isso.
– Você está prejudicando sua carreira, será que não percebe? Luís é um artista e como todos eles, tem o sucesso como meta primordial de vida! Ele sonha com o reconhecimento internacional! Você não é capaz de imaginar o que significa um sonho desses pra um artista plástico e ainda mais, o quanto é árduo o caminho da realização. Ele precisa restringir-se de forma exclusiva e incondicional à sua arte. Pra resumir, o sucesso é o que representa felicidade plena pra meu amigo; não essa paixão frívola e ridícula que vocês pensam viver. Quero que ele vença, que se projete na carreira! Ele nasceu para o destaque, para o nobre! E você está impedindo o que pra mim sempre se manifestou como fato irrefutável. Não é mulher que o mereça, não possui estrutura, não possui o requinte necessário! Falta-lhe verniz, entende? Bem, mas isso não vem ao caso. Não estou aqui pra enumerar suas limitações. E então, aceita ou não minha proposta?
– Acho que o motivo de sua birra comigo é outro.
– O que quer dizer?
– Isso também não vem ao caso. Quero que saia daqui agora!
– Pois muito bem. Eu tentei. Espero que seja esperta o suficiente pra não comentar sobre esta minha visita com Luís. Eu negaria e talvez ele ficasse dividido entre acreditar em mim, ou em você. Eu, no seu lugar, não correria o risco.
E saiu, com sua ira costumeira.
Ela permaneceu diante da porta, imóvel, por alguns minutos. Em seguida, atirou-se no sofá. Talvez tivesse mesmo que abrir mão de seu sentimento, pelo bem do homem que amava. Preocupava-se com a raiva incontida daquele que acabava de sair. Poderoso que era, disporia de várias formas de prejudicá-los. Poderia, num estalar de dedos, exterminar a carreira do artista! Ah, não... Mas ela não renunciaria a maravilha que estava vivendo, assim, tão facilmente. De jeito nenhum!
Superado o episódio, reiniciaram a vida poética a dois. O amor que sentiam era inabalável, nada podia detê-lo. Nem mesmo Vicente, que aliás, havia desaparecido desde que Luís lhe proibiu interferências pessoais e financeiras, fato ocorrido antes da visita a Míriam. Ela, embora tivesse optado por nada falar sobre a tal visita, não suportou manter o silêncio e contou tudo ao amante. Ele levantou-se imediatamente, apanhou os documentos e saiu, rumo à casa de Vicente, tomado por uma raiva incontida! A mulher tentou impedi-lo, mas gostou de não conseguir.
Luís nunca realizou o trajeto entre os dois endereços em tão pouco tempo! É, estava furioso! Lá chegando (tinha as chaves da cobertura de seu antigo tutor), encontrou o atormentado homem a deleitar-se num perfumado e farto banho de espuma.
– Luís! Que bela visita! Suponho que já tenha se libertado de sua paixão de adolescência tardia.
E liberou, através da bela arcada, um sorriso largo, de puro regozijo! Mas o moço logo tratou de desencantá-lo:
– Quero que nunca mais me procure, que se esqueça definitivamente de minha existência, como eu, a partir deste momento, farei com relação à sua. Como pode ser tão sujo, tão asqueroso! Bicho, porco imundo! Verme!
Vicente levantou-se desequilibrado, pálpebras e queixo incontrolavelmente trêmulos, numa autêntica demonstração de susto e desespero! De repente, tudo se confundiu em sua cabeça, como se o cérebro lhe estrangulasse as emoções! Desejou, sem mesmo se dar conta, a morte, o desaparecimento total! Os sentidos se traíam mutuamente, não se concatenavam! Diante dos olhos, uma escuridão aterrorizante! Na garganta, uma enorme esfera de chumbo impedindo-lhe voz e respiração; e nos ouvidos, algo como uma britadeira em interminável atividade, estrondando ao mesmo tempo aquelas palavras: “Porco... Sujo... Asqueroso... Verme...”.
– Luís, não estou entendendo! O que houve?
– Não seja cínico!
E o outro deixou-se levar pelo pânico ao conscientizar-se do que acontecia, começando a gritar como um louco:
– Quer que eu desapareça de sua vida? Pois bem, eu acatarei! Eu desaparecerei de sua vida! E de sua carreira também! É isso que você quer? Quer se acabar pelos anos que lhe restam a implorar que pessoas sem estirpe lancem olhares mortos às suas obras? Sabe que sem mim, estará arruinado! Não haverá patrocínio, não haverá marchand, tampouco galerias para exposições! Você nunca soube viver sozinho e se acha que aquela puta insignificante conseguirá tocá-lo pra frente, engana-se!
Luís gritou ainda mais intensamente:
– Não admito que se refira à Míriam dessa forma!
– Falo pra o mundo inteiro ouvir! Puta! Piranha! Vagabunda! Domadora de caralho! Ela não presta pra nada, ouviu bem? Pra nada!
O artista, não se contendo, lançou-lhe um forte soco, jogando-o novamente na banheira! Vicente levantou-se, apesar da dificuldade em firmar os pés sobre o fundo escorregadio. Esfregando forte, com a mão direita, o maxilar que doía, tentou controlar-se:
– Luís, não é justo que abandone nossa amizade de anos por uma paixão inconsequente! Por favor!
– Você vive como se estivesse num constante e enfadonho leilão e quer sempre arrematar tudo! Talvez em seu mundo frio e vil seja mesmo assim! Posso até concordar que todas as coisas na vida têm preços, mas que nem sempre são pagos a partir de um mero destacar de cheque. Existem trocas de sentimentos bons, Vicente, que estão bem acima das negociatas sórdidas através das quais você ganha a vida. Mas você foi privado da graça de conhecê-los, de vivenciá-los, pobre diabo! Você inspira piedade e só consigo sentir ódio! Sempre percebi sua deficiência moral, mas nunca pensei que pudesse ir tão longe! Você é desprezível!
Vicente prostrou-se de joelhos diante dele, atracando-se em suas pernas, em sua cintura. Levantou os braços cheios de espuma, tocou o peito, molhou, apertou, sentiu o corpo inteiro do outro e despojando-se de todo o brio e toda a empáfia que lhe eram característicos:
– Pelo amor de Deus, Luís! Não faça isso! Eu imploro! Pode me bater! Pode me cuspir! Pode pisar em minhas mãos, em meu rosto, em meu peito, em minhas costas, mas não faça isso! Eu posso resistir a tudo, tudo mesmo; menos ao seu desprezo!
Luís, atordoado com a atitude doentia e deplorável do primo, para livrar-se das mãos que o impediam de mover-se, chutou-lhe violentamente a barriga e saiu, ainda cego de fúria, aos passos fortes pela exagerada extensão da residência! O solitário protetor levantou-se, ficou andando de um lado a outro, completamente transtornado, recusando-se a acreditar no que acabava de acontecer. Desolado, chorava como criança perdida! Correu até a sala, numa tentativa inútil de alcançar seu querido primo e jogou-se no chão. Corpo nu, coberto de espuma, carente e desamparado. Encolhia-se, esticava-se, enrolava-se no tapete, feito uma serpente agonizante! Pôs-se a atirar cristais e porcelanas contra móveis e espelhos do recinto, entre berros de desespero e impulsos insanos! Sentia-se sem forças para erguer-se, para reorganizar as ideias, sentia-se em cacos, como aqueles espalhados no chão! Pedia a morte! Toda uma juventude, toda uma vida de dedicação total concluída de maneira tão estúpida! Recordou-se de quando recebera a tutela de Luís, da alegria que sentira ao encontrar objetivo para a vida solitária e vazia, das demonstrações de respeito e amizade que recebera ao longo dos anos, de tudo o que passaram juntos! Luís era para ele o único amigo, o irmão, o filho, a família; o seu prazer, a sua própria existência. Notou sua ossatura mole, quase água. Voltou à banheira, mergulhou-se e, entre lágrimas, mais urros e muito ardor, foi, pouco a pouco, dissolvendo-se, misturando-se à líquida massa branca. Toda a sua matéria humana reduziu-se, enfim, a alguns gramas de espuma ácida.
A partir daquele dia, Luís, que nunca mais procurou o ex-amigo e, portanto, desconhecia seu desaparecimento, acometeu-se de um mal estranho: sempre que se excitava e tocava Míriam, sentia um ardor insuportável no corpo inteiro, que o impedia de fazer amor com ela. A pele, em assustadora vermelhidão, queimava intensamente, como se exposta ao fogo, como se envolvida em brasas, e o levava aos berros de dor e desespero. Insistiram por meses a fio e descobriram que o sentimento que os unia não era tão forte como pensavam. Não demorou para que a situação constrangedora comprometesse o relacionamento do casal, que aos poucos se foi definhando, até acabar completamente. Não teve mais notícias dela. E jamais conseguiu transar com mulher alguma, por causa da misteriosa e incurável moléstia, cuja procedência nenhum médico descobria. Não poderiam mesmo descobrir, sua origem transcendia os limites da carne: os toques de Vicente, naquele último encontro, contaminaram Luís com a espuma ácida que já exalava de seus poros. O dedicado protetor, mesmo reduzido a leves e frágeis bolhas brancas rapidamente extirpadas da existência, guardaria para sempre o corpo do amado. Não pôde tocá-lo; degustá-lo; possuí-lo. Pois que outros mortais também não o pudessem.