Caminho Traçado
Estava sozinho num lugar estranho. A claridade daquela manhã escura de domingo ofuscava um pouco a sua visão e deixava-o transtornado com a profusão de cores. Cinzas, pretos e brancos a mais não poder. Uma atmosfera gris. Começou a reparar então na simetria do lugar. Pavilhões exatamente iguais pintados de branco, separados por duas alamedas de palmeiras todas com a mesma altura e espessura. E essa alameda era dividida por uma rua que, do começo ao fim, não tinha disparidade de um milímetro na largura. O trabalho de uma mente metódica, ele pensou com um pouco de medo. Nunca apreciara a simetria bilateral. Ela o intimidava.
Reparou que a rua era calçada por ladrilhos brancos e pretos. Por que essa escolha de cores? Por que não escolheram laranjas e verdes, é claro, foi a resposta que veio logo em seguida. Mas ela pareceu não o convencer. Resolveu mudar logo de assunto. Mas se essa rua fosse minha eu a ladrilharia com cores mais alegres. Então ele pensou que não se lembrava da existência daquele lugar e muito menos de uma rua como aquela, ainda mais com uma configuração tão incomum.
Ele começou a pensar com melancolia naquela rua feita para ser pisada por outras pessoas e que não podia falar, nem protestar, muito menos evitar quem queria passar por cima dela. A eterna opressão. Ser eternamente pisado e não protestar. Mas aquela rua que dividia aquela alameda e que por sua vez separava aquele conjunto de prédios realmente o intrigava. Deveria atravessá-la e impor-lhe o jugo de seu peso? A idéia o enchia de medo. E se a rua resolvesse que aquele era o exato momento de reação. Ação e reação. Seu peso sobre a rua e o da rua sobre ele mesmo. Ele não aguentaria o fardo. E esse sentimento de impotência lhe causava um pânico cruel. E fato de não ter certeza se o seu o peso faria diferença para a rua era uma coisa ainda mais atroz. Peso é igual à massa vezes a aceleração da gravidade. Ele seria grave o suficiente? Achava que não. Faltava-lhe a gravidade necessária nessas horas. Ninguém costumava levá-lo a sério. Seu peso sobre a rua. O peso da rua sobre ele mesmo. Peso dela. Peso dele. Pesadelo grave no mundo.
Mas era preciso tomar a decisão. Afinal de contas para chegar ao lado oposto era preciso atravessar a rua. Se ela não se opusesse a isso melhor. Se não teria que achar uma maneira de lidar com o assunto. Reparou então na garota vestida de branco que pulava amarelinha nos ladrilhos. Ele sempre quisera pular amarelinha nos ladrilhos, mas nunca tivera a coragem necessária. Não só por medo do que os outros fossem pensar, mas também pelo que ele iria pensar de si mesmo. Sempre quisera mostrar uma imagem racional às outras pessoas. E então reparou como os cabelos daquela menina eram revoltos. O que era lógico, já que não havia vento, ele pensou ainda meio que preso de dúvida.
Mas enfim, distraída como deveria estar com aquela menina a pular-lhe em cima, a rua talvez não percebesse que ele lhe pisava. Resolveu aproveitar o momento e chegar ao outro lado.
- Quem sois vós?
Ele pulou sobressaltado. Ou a voz vinha da rua ou vinha de dentro de sua mente. As duas perspectivas eram aterradoras. Mas por ter que escolher decidiu-se pela rua. Não ficava bem uma voz vagando em sua mente, ainda mais falando esse português tão antiquado. Então resolveu responder:
- Só digo quem eu sou se você disser para onde vai. Afinal de contas não me lembro de ter nunca visto uma rua xadrez nesse lugar. Depois se deu conta que estava conversando com uma rua. Algo tinha que estar errado, pensou aturdido. Decidiu que devia simplesmente continuar atravessando a rua, sem se importar com aquilo.
- Por que me pisas?
Ele deu um salto, sobressaltado. Agora não restavam dúvidas. Sabia de onde provinha a voz. Ele estava realmente encantado. A rua falou novamente então.
- Ajude-me.
- Mas em que eu poderia lhe ajudar? Estava intrigado com aquela rua suplicante que lhe parecia tão transtornada.
- Ajude-me a desconstruir esse caminho traçado, que inicia no mesmo ponto e se dirige sempre a outro lugar. Retire os ladrilhos, reduza-os a pó, faça-me poeira ao vento, disse a rua. E ajude a instalar o caos nesse lugar onde querem que, a força, reine a paz. Estou presa, vítima de um pesadelo kafkaniano insuportável.
Sua voz era grave e triste. Ele sentiu as lágrimas correrem, quentes naquela manhã fria, sem saber direito o porquê. Comovido resolveu que iria ajudá-la.
- Espere um pouco. Vou a um daqueles prédios ver se acho algo para começar a quebrar. Naturalmente lá dentro deve haver algo que eu possa usar, disse ele sem saber por que. Saiu correndo.
- Não faça isso, gritou a rua. Mas era tarde. Ele já havia entrado num dos pavilhões. Estava correndo em um enorme corredor sem janelas e com paredes totalmente brancas. Havia inúmeras pessoas lá dentro, algumas com olhar assustado, outras de olhar feroz. Mas todas com o olhar perdido em outro lugar. E, apesar de serem elas a usarem camisolas brancas, olharam para ele e começaram a rir.
Então ele percebeu dois vultos e se voltou para trás. Viu dois homens de aspecto truculento e vestidos de verde. Um deles trazia uma seringa na mão. Sentiu que era imobilizado e que lhe aplicavam uma injeção até a última gota na veia do braço.
- Esquizofrenia, foi a última palavra que ouviu, antes de cair no doce sono do esquecimento.
Acordou numa cama estreita, num quarto todo branco. A cama estava milimetricamente colocada no centro do dormitório. O piso era xadrez de branco e preto.