Círculos Concêntricos
Os círculos concêntricos espalharam-se em direção as paredes do copo, quase cheio, posto sobre a mesa. As pequenas ondas poderiam ser ouvidas se não fosse pelo ruído da força com que o vidro bateu na madeira ressecada. Virou-se para fechar a brecha da janela por onde entravam as gotas da chuva que aumentava a cada instante. O barulho no telhado não era um incômodo, era alento para os pensamentos que vinham e voltavam. Não sabia o quanto estava distante dos que outrora enchiam o espaço vazio com vozes, calor e brincadeiras. Tentou calcular a distância logicamente, mas se perdeu nos número e nas vozes que não se calavam. Com um sorriso meio de canto percebeu a própria tolice na tentativa de organizar os números de forma que pudesse chegar a uma distancia exata. A loucura por vezes é assim, mistura campos divergentemente opostos, mas sempre encontra um ponto em comum. Os números não poderiam calcular distância alguma, no entanto, apontava, como arco e flecha, para uma saudade ebuliente e que não poderia ser contida. Puxou uma cadeira, sentou e então afastou o copo de água ao mesmo tempo em que a outra mão aproximava a garrafa do café. Virou o copo e despejou a bebida no copo escuro. Seus músculos faciais se contraíram no momento em que levou até a boca e ingeriu o líquido passado e frio. Devolveu o copo, quase vazio, ao lado da garrafa, que deixou, talvez por acidente, aberta.
Até o quarto cambaleou, meio pesado meio leve. Pelo corredor jogava olhares, como raios solares concentrados e sistematicamente coordenados, em direção às fotografias, que a uma gigante onda ele se sentia impelido. O corredor ia se fechando sobre ele a cada passo e a cada movimento como se quisesse evitar, ele parava e mirava uma fotografia. Apanhou o casado no fim do corredor e entre as duas paralelas fez todo o caminho de volta, tentando fugir dos rostos que a ele contemplavam. Pela transparência da janela observou que já não chovia, mas a janela ia perdendo sua clareza ao passo que ganhava um tom branqueado e denso. Sua cabeça pesava sobre o corpo, seu corpo sobre as pernas e as pernas sobre o mundo que lhe devolvia todo o peso em dobro. Deu o último gole no café gelado e fechou a porta atrás de si, não por acidente. A neve caindo ia escondendo suas pegadas que iam ficando cada vez mais profundas. As pernas geladas iam divagando e parando, no esforço de resistir ao gelo. Dobrou os braços sobre o peito e deitou o rosto sobre as mãos frias. Os joelhos que já não podiam se mexer, mas compassivos, deu-lhe o último movimento em direção à grama coberta pela neve. Algumas vozes soavam de longe, mas não pôde levantar a cabeça para olhar. Pareciam vir em sua direção, mas à medida que as vozes se aproximavam já não sabia se lhe eram externas ou internas. Já não podia ouvir voz alguma, e nesta falta, captou uma imagem que parecia distante. Com os olhos bem fechados, viu um belo rosto de criança. Ela o olhava atentamente. Ele se admirou em notar que a criança tinha um sorriso muito familiar, como se estivesse olhando para si mesmo. Pensou em abrir os olhos, mas já não abriam e dispensou qualquer esforço. Podia sentir o sangue perdendo o calor e aplacar-se lhe nas veias.