ÀS TRAÇAS
Assim que a telefonista avisou que Dr. Leocádio, diretor da empresa, chamava-o na sua sala, Maurício interrompeu imediatamente o que fazia, para atendê-lo. Era novato, dois meses apenas no emprego, não podia decepcionar. Bateu e abriu a porta, com cuidado:
– Com licença, Dr. Leocádio.
– Feliz aniversário!!!
Que surpresa! Quanta consideração! Além de diretor e secretárias, todos os gestores do departamento de finanças estavam presentes na pequena comemoração. Órfão de pai e mãe, sem irmãos, parentes, criado no orfanato à custa de caridade cobrada, emocionava-se demais diante de qualquer demonstração de afeto que recebia. Afinal, era só um assessor! Então, todos ali estavam sendo mesmo sinceros. Cumprimentaram-no, um a um. Maurício, à voz embargada, agradeceu:
– Muito obrigado, gente! Confesso que jamais tive uma recepção tão calorosa. Desculpem-me, é que estou emocionado.
Dr. Leocádio respondeu por todos:
– Ora, meu rapaz, apesar de pouco tempo nesta empresa, você já demonstrou que tem garra, é competente, proativo, relaciona-se bem com toda a equipe, tem uma carreira promissora, enfim. Agradeço à Sandra, por tê-lo indicado.
Sim, foi Sandra quem abriu seus caminhos para o emprego. Ajudou-o desde a elaboração do currículo, procurando compensar nas qualificações, na formação acadêmica, a absoluta inexistência de experiências profissionais anteriores na área de gestão. E convenceu Leocádio, que o admitiu imediatamente após a primeira entrevista. Maurício a conhecera assim que saiu do orfanato e entrou na universidade pública, valendo-se de trabalhos informais e pouco remunerados para sobreviver. Embora tivessem estudado durante cinco anos juntos, ele não podia afirmar que a conhecia o suficiente, devido ao véu de mistério que envolvia a vida da bela moça. Às vezes, em alguma festa, costumavam ficar juntos, Sandra adorava fazer carícias safadas e picantes, excitando-o ao máximo e deixando-o na mão, ao final.
Após seis meses de serviços prestados à empresa, o dinâmico jovem foi promovido a gestor do departamento de custos. Liderava quatro colaboradores que o adoravam, admiravam sua incrível capacidade de eliminar conflitos e dificuldades, sempre norteado pelo respeito mútuo, sem arrogâncias, sem agredir. Sabia motivar a equipe com maestria e assim, todas as metas não só eram alcançadas, como superadas, mês a mês. Indicadores positivos, análises críticas primorosas, enfim, era um profissional valioso. Sua competência logo foi coroada com o status de excelência por uma conceituada certificadora internacional. Houve festas, homenagens, prêmios em dinheiro e afins. Rapidamente, Maurício conseguiu financiar apartamento e carro, sua vida ascendia-se dia a dia.
Passada a euforia das comemorações, Leocádio o chamou em sua sala:
– Maurício, você progride cada vez mais aqui na empresa. Gosto disto. E a essa altura, já conquistou minha confiança o suficiente para que eu lhe faça uma proposta.
O rapaz apenas ajeitou-se na cadeira, curioso.
– Serei direto. Há muito tempo, tenho um caso de amor com Sandra. Mas ultimamente estamos correndo riscos, acho que baixamos a guarda. Sou casado e minha esposa anda muito desconfiada. Como não tenho o menor interesse em ameaçar a solidez do meu matrimônio e nem pretendo me afastar de minha amante, pensei que talvez você pudesse casar-se com ela.
– O quê?
– Sei que têm afinidades, não seria nenhum sacrifício, rapaz. Ela poderia ser mulher de nós dois.
– Sandra sabe disso?
– Sabe sim. É moderna, livre de convenções e adorou a ideia. Quanto a você, ganharia o cargo de supervisor geral, seu salário seria triplicado. Enfim, só tem a ganhar.
– Não sei se me sentiria bem com essa situação absurda, Dr. Leocádio. Afinal, como o senhor deve desconfiar, Sandra mexe comigo, sinto algo especial por ela. O que me propõe é que eu me venda completamente.
– Você está complicando o que não tem complicação nenhuma.
– Preciso pensar.
– Não tenho paciência pra esperar muito; façamos assim, como hoje é sexta-feira, vá pra casa agora, aproveite esta tarde e todo o final de semana pra refletir. Na segunda, você me responde.
Desde o momento em que saiu da sala do diretor, Maurício não conseguiu pensar noutra coisa. A caminho do apartamento, quase bateu o carro por duas vezes. No sábado, acordou bem cedo, sentou-se na ínfima área de serviços e ficou imaginando como seria bom ter mais conforto, mais dinheiro, mais poder. Mas a custo de sua liberdade? De sua dignidade? Bebeu algumas doses de whisky ao longo do dia. À noite, resolveu sair, na esperança de esquecer o que tanto afligia seus pensamentos. Entrou numa boate, sentou-se diante do balcão, pediu um drinque; e outro; e outro. Um jovem sentou-se no banco ao seu lado, elogiou sua barba bem feita, pediu para tocá-lo, ele permitiu. O menino enfiou um papelzinho com número de telefone no bolso apertado de seu jeans. Estava zonzo demais. Pagou a conta e foi embora. A avenida estava relativamente vazia, àquela altura já era madrugada de domingo. O trânsito tranquilo e a embriaguez o motivaram a acelerar. À sua frente, imagens confusas e antagônicas desfilavam. Dr. Leocádio, o jovem e as luzes coloridas e piscantes da boate, faróis, sinais, Sandra... E o desfile foi se acelerando cada vez mais, imagens se misturando, já podia ouvir os sons das vozes, das músicas, da cidade. Tudo embaralhado, tudo embaralhado! Um poste! Um poste quebrou o vidro do carro. Um estrondo terrível!
Quando voltou a si, Maurício estava sobre um leito de hospital. De pé a seu lado, um médico o examinava:
– O que aconteceu? O que estou fazendo aqui?
– Você sofreu um acidente de carro.
Com bastante dificuldade, conseguiu concatenar as lembranças. Reviu o poste à sua frente:
– Foi grave, doutor?
– Você terá que passar por uma cirurgia ainda hoje. Mas acredito que tudo ficará bem.
Nem o moço, nem o médico, nem os outros imaginaram que a fratura na perna esquerda deixaria uma sequela tão séria. Maurício teve sua locomoção comprometida. Era irreversível. Após dezenas de sessões de fisioterapia, conseguiu ficar de pé, andando precariamente. Passados três meses, ele voltou a trabalhar, mas não teve o mesmo rendimento. Dependia das pessoas para muita coisa. Com o tempo, percebeu que Leocádio o tratava com frieza, Sandra fugia de sua presença, a equipe já não o chamava de chefinho querido e obedeciam às ordens com má vontade. Sentiu-se abandonado. Mas aquela situação não se prolongou. Foi numa segunda-feira. Dr. Leocádio o chamou em sua sala:
– Pois não, Dr. Leocádio.
– Como você demorou!
– Não tenho mais a mesma agilidade.
– Bem, serei direto, como de costume. Quero que esqueça daquela proposta que lhe fiz. E ninguém pode saber sobre meu caso com Sandra.
– Eu já me esqueci. E não sei de caso algum. Agora, tudo mudou.
– Você tocou no ponto certo, tudo mudou. Você mudou. Não traz os mesmos resultados satisfatórios de antes. E está comprometendo os fluxos, os processos. Além disto, ainda se mostrou irresponsável, inconsequente. Onde já se viu? Dirigir bêbado? Que mau exemplo! Bem, Maurício, a empresa não se interessa mais por você. Está demitido.
– Confesso que já esperava por isso.
Desempregado e deficiente, passava o dia inteiro ao telefone e diante do computador, fazendo contatos, tentando ajuda, mas os contatos sumiram, os admiradores sumiram, as namoradas sumiram, os amigos sumiram. Rapidamente. No extremo da carência, decidiu ligar para o jovem da boate, mas ao saber do acidente, de sua condição, este também sumiu. Aos poucos, foi se definhando, perdendo o viço, o vigor, até que um dia, ao esticar-se para alcançar o telefone sobre a escrivaninha, percebeu que seu braço esquerdo estava amassado. Tentou desamassá-lo e ele rasgou-se um pouco. Apavorado, parou de forçar. O direito também estava amassado. E mole, fino, sensível, um pouco áspero. Procurou o copo com água que sempre deixava ao seu lado e sua mão não conseguiu sustentá-lo. Molhada, ela se desmanchou! Tentou gritar, mas a voz não saiu. Que horror! Ele havia se transformado em papel jornal! Um monte inteiriço de papel amarelado, envelhecido e frágil. À menor tentativa de mover-se, ameaçava rasgar-se um pedaço e se embolava, espalhava-se mais e mais no chão. Já não ouvia nada. Meio entorpecido, apenas enxergava sombras, com dificuldade. Retomou alguma consciência ao sentir fisgadas por toda a sua extensão. Muitas, muitas fisgadas! Eram traças! Centenas de traças! Elas o comiam com uma fome devastadora, apossavam-se de sua existência de papel! Ele nada podia fazer, não conseguia mexer-se. De repente, várias delas encontraram seus olhos. Ao primeiro ataque ali, nada mais viu. E entregue, sem forças, vencido, o monte de papel velho foi completamente devorado pelas traças.