O Despertar
Meu corpo me pedia para sair, minha alma clamava desesperadamente por aquilo. Tudo me pedia. A brisa entorpecente da noite soprando em meu rosto, a lua estava cheia, linda e soberana, dominando um céu negro e apinhado de estrelas. Prometi a Ian que não sairia, ele não queria que eu fizesse aquilo, não achava certo, havia me pedido milhões de vezes, pois se eu o fizesse correríamos o risco de nos tornarmos inimigos, então prometi a ele que não sairia, mas algo naquele lugar foi mais forte que eu e me conduziu pra lá. No caminho, senti que estava sendo observada, mas nem liguei o chamado era tão forte que nem tive tempo de sentir medo do que quer que estivesse me acompanhando, ultimamente, depois de ter tomado de vez a minha decisão, meus sentidos estavam mais aguçados, os espíritos não paravam de aparecer tanto em sonhos quanto pessoalmente me pedindo que reconsiderasse pois se eu fizesse realmente o que queria, estaria me desfazendo de um dom dado por Deus e pela natureza e passaria a ter dons obscuros, não poderia mais vê-los e nem ajuda-los. No início fiquei um pouco pensativa sobre isso. Desde pequena eu era atormentada por espíritos, sempre os vi, ouvi, senti, mas por um bom tempo não soube como lidar com eles, por muitas vezes chorava de medo, implorando para que fossem embora, quando eu contava a alguém, a pessoa se afastava de mim ou então dizia que eu estava ficando louca, já fui parar em muitos médicos por causa disso, mas à medida que fui crescendo, comecei a me informar e descobrir algumas formas de controlar as visões. O medo passou um pouco, mas continuei a vê-los. Quando perdi meus pais, as visões pioraram de novo, vi minha mãe uma vez, era o que eu mais queria, mas de tão assustada não consegui se quer abrir a boca para falar com ela, então ela se foi. Depois desse fato, me revoltei, de que adianta ter o dom de ver espíritos, sentir e falar com eles, se não posso trazer ninguém de volta, isso não é justo! Foi refletindo sobre isso que tomei de vez minha decisão, não tinha mais nada a perder, se desse certo, eu seria, pela primeira vez e muito tempo, uma pessoa feliz, se não, eu morreria e tudo acabaria de vez, como acontece com qualquer mortal.
A floresta estava muito iluminada pela luz da lua, havia muito tempo que eu não ia ali, desde a morte de meu pai, era doloroso de mais se quer pensar, mas agora era diferente, eu sairia dali diferente, e talvez, se tudo desse certo, as lembranças da minha vida mortal não me assombrariam mais. Fui entrando cada vez mais fundo em direção à clareira, a floresta havia mudado um pouco, não estava mais tão fechada, peguei uma das trilhas e segui em direção ao meu objetivo. O ar foi ficando mais denso e pude escutar meus passos, senti um calafrio percorrer minha espinha e sabia que não tinha nada a ver com o vento, parei. Estava ofegante. Meu coração estava tão acelerado que outra pessoa seria capaz de ouvi-lo de longe. Olhei ao meu redor, não havia ninguém. Silêncio absoluto. Comecei a pensar se deveria mesmo continuar ali, se não deveria voltar e ouvir o conselho de todos que me pediram para que eu não fizesse aquilo. Imediatamente uma voz dentro de mim respondeu: “Continue, você não tem nada a perder, está no caminho certo, ignore o medo.” Fui respirando mais calmamente e aos poucos, o coração voltou a bater mais devagar. Recomecei a andar e pouco tempo depois já estava na clareira. Era o lugar mais iluminado, por entre as árvores eu podia ver a lua claramente. Sentei e esperei. Confesso que o silêncio daquele lugar estava me deixando muito assustada, toda coragem que eu havia reunido estava começando a se dissipar, estava tudo muito quieto, nem um barulho, até o vento estava silencioso. Esperei mais um pouco e nada. Comecei a pensar que era melhor tentar voltar pra casa e desistir de tudo, eu só podia estar louca, ir para o meio da floresta, sozinha, a noite. Ele não iria aparecer, disse que saberia quando eu chegasse e que queria ver se eu realmente teria coragem de ir até ali sozinha, se eu realmente queria o que eu havia pedido a ele, poderia até já estar ali, mas por alguma razão eu não conseguia sentir sua presença. Olhei no relógio, já se passava da meia noite, o ar ficava cada vez mais frio e eu, a cada minuto que passava, ficava mais incomodada com aquele silêncio. Decidi ir embora. Quando me levante, senti outro calafrio transcorrer minha espinha, bem mais forte que o primeiro. Um vulto passou por entre as árvores, tão rápido que não pude ver, meu coração acelerou de novo, fiquei apreensiva, sabia que não era um espírito, era algo físico. O vulto se moveu de novo, dessa vez pude ver a sombra de um rosto. Tudo ficou quieto. Não sabia se corria ou se continuava parada, foi então que ouvi uma voz doce e ao mesmo tempo venenosa sussurrar em meu ouvido.
- Tu és mesmo corajosa, vir aqui a essa hora da noite, sozinha e sem avisar ninguém onde estás!
- Não te disse que eu viria, aqui estou.
- Sim, estou vendo, provou que és uma pessoa decidida, de palavra, mas não achas que estás se arriscando de mais ao fazer isso? Eu poderia muito bem não cumprir o que disse...
- Pensei mesmo que você não viria, já estava indo embora.
Ele se colocou a minha frente e acariciou meu rosto ao falar com aquela voz doce e suave que ao mesmo tempo soava com um tom de perigo, de ameaça, seus olhos verdes, muito brilhantes penetravam os meus, seu cabelo negro e liso caia sobre seu rosto perfeitamente belo, uma beleza sobrenatural, que me deixava hipnotizada, mas o que me fez perder a fala foram suas palavras.
- Não me refiro a isso, jamais deixo uma dama me esperado, eu já estava aqui te observando, vendo se terias mesmo coragem de vir até o fim, mas eu poderia muito alimentar-me de ti e deixar seu corpo aqui para que talvez fosses encontrada um dia, não tens medo?
Mais uma vez passou pela minha cabeça se eu realmente deveria estar ali, por um momento pensei em correr, mas de nada adiantaria ele me alcaçaria antes que eu chegasse à metade do caminho, então apenas respirei bem fundo e respondi.
- Por um momento tive medo do silêncio da floresta, de que alguém que não fosse você aparecesse, mas jamais de você. Sei muito bem o que quero, disse que estaria disposta a te encontrar em qualquer lugar.
- Será mesmo que sabes o que quer? Posso sentir o medo que emana de ti, minha cara... Mas podes ficar tranquila que não vou só me alimentar de ti, bom, pelo menos não pretendo, a menos que eu mude de ideia. Quero saber se pensou a respeito das cosas que eu te disse? Vais embarcar em um caminho sem volta, e não é tão fácil quanto pensas, podes desistir agora e eu até te deixo voltar viva pra casa...
- Não. Pensei em tudo que você me disse, já tomei minha decisão, farei o que você mandar, o que for preciso, vou aprender tudo que for necessário para conseguir me adaptar.
- Pense bem minha cara, estarás abrindo mão da sua mortalidade, da sua alma, da sua humanidade e se um dia se arrependeres, não poderás mais voltar atrás, terás que viver com isso pela eternidade. A minha mortalidade me foi tirada contra minha vontade e eu daria tudo para tê-la de volta, tu tens a sua e estás abrindo mão...
- Se eu pudesse, faria com que você voltasse a ser mortal, trocaria de lugar com você, te daria minha mortalidade, mas não posso, quero ser transformada tanto quanto você quer ser humano novamente, não tenho mais o que pensar, estou decidida, faça o que tem que ser feito.
- Está bem, minha cara, farei como quiseres, mas te darei um aviso: jamais transformes ninguém, em hipótese alguma, jamais faça isso, nem mesmo se ficares apaixonada, terá que desistir dele ou vê-lo envelhecer e morrer, mas jamais o transforme, porque eu vou saber, e virei atrás de ti de quem tiveres transformado e os matarei, sem dó, e não penses que podes me enganar, eu sempre saberei onde te encontrar. Estamos combinados?
Nesta hora, senti realmente o peso daquelas palavras, tive a convicta certeza de que ele dizia a verdade, ele realmente teria coragem de me matar, mas eu sabia que não iria me apaixonar, seria a última coisa que eu faria sabendo que teria uma eternidade pela frente.
- Sim, estamos combinados, você tem a minha palavra de que não vou transformar ninguém.
- Então, minha cara, bem vinda a sua tão sonhada vida imortal, aproveite a eternidade...
Confesso que tive medo novamente, mas apesar disso, nunca iria voltar atrás, estava prestes a começar viver a vida que sempre senti que me pertencia, não veria mais espíritos, e nem precisaria conviver com lembranças que eu não quisesse, teria a eternidade pela frente para fazer o muito que ainda não tinha feito em 26 anos, sem me preocupar com o tempo. Estava nascendo de novo...
Ele veio em minha direção, segurou minha mão, acariciou meu rosto, sentiu o cheiro do meu sangue, meu coração batia acelerado, pude ver nitidamente a cor de seus olhos mudando, ele ficou atrás de mim, tombou gentilmente minha cabeça para trás, senti seus dedos passando pelo meu pescoço, olhei para a lua, que continuava clareando a floresta, me sentia muito feliz... Senti suas presas penetrarem meu pescoço e uma dor excruciante tomar conta do meu corpo, uma dor como jamais senti em outra ocasião, a pior de todas, senti uma fraqueza imensa tomar conta do meu corpo, minhas pernas cederam e minha visão escureceu...
Quando acordei, não sabia onde estava. Meus olhos que estavam embaçados, aos poucos foram voltando ao normal, fui me recordando da noite que se passou, me dei conta de que
es estava em meu quarto, deitada em minha cama, senti uma tristeza enorme ao perceber que tudo não passou de um sonho, tive vontade de morrer, não acreditava que pudesse ter apenas sonhado, parecia tão real...
Mas quando passei a mão em meu pescoço, senti algo diferente... Minhas mãos estavam diferentes... Meu corpo estava diferente... E quando abri a cortina e o sol tocou na minha pele, foi como fogo queimando papel... Percebi então que não havia sonhado, estava acordando para a eternidade.