A SUCURI

Havia duas semanas que abandonara o barraco onde morava com o pai alcoólatra. O pouco dinheiro que tinha se foi. Ao passar por uma sombria rua da cidade, reduto de outros bêbados, drogados e marginais de vários matizes, Cátia viu, colado na parede de um bar, um anúncio escrito em folha de ofício toda escurecida pela poeira do asfalto, com caneta esferográfica, letras grandes, tortas e vacilantes, sobre uma vaga para balconista. Julgando, pelas aparência e localização do lugar, que seriam improváveis maiores exigências, resolveu tentar. Entrou e aproximou-se do homem que limpava o vidro do balcão com uma flanela engordurada.

– Bom dia! Sobre a vaga de balconista...

– Se quiser pegar, dou teto e comida. Não posso pagar muito, mas...

– Quero sim!

Levando a mão direita ao queixo e esfregando-o lentamente, depois de observá-la por alguns segundos, pensativo, ele respondeu:

– Tem boa aparência, é jeitosa, sabe falar direitinho... É. Pode começar agora?

– Posso sim! Tava precisando mesmo de um lugar pra ficar, tava num abrigo. Meu nome é Cátia. E o do senhor?

– Pedro. Mas não assino carteira, hein?

– Tá.

Pedro era um homem de feições rudes, gordo, de fartos e longos pelos espalhados em peito, braços e concentrados na barba grande e grisalha. Sua voz, de tão grossa e rouca, era assustadora! Não perdeu tempo, tratou logo de informar à Cátia suas obrigações. Seria, além de balconista, cozinheira, faxineira, lavadeira e garçonete. Ah, e cega e surda! Mandou que tomasse um banho e fez-lhe um adiantamento de salário, para que comprasse algumas peças de roupa.

O emprego lhe proporcionou uma verdadeira metamorfose de caráter. Aprendeu a dissimular-se, a adaptar-se às mais diversas e embaraçosas situações. O fato de conviver com os frequentadores do lugar, vulgares ou violentos demais, desestruturados social e emocionalmente, propiciou-lhe uma total flexibilidade de atitudes. Para se esquivar, por exemplo, das investidas, das insinuações eróticas que recebia a todo momento, criou um verdadeiro arsenal de saídas estratégicas. Quanto aos sonhos de realização pessoal e financeira num universo mais ameno, estes se dispersaram e sumiram, um a um, em cada bucha de maconha, em cada murro de homem no olho, na boca, em cada cópula bêbada, nojenta e vazia.

O tempo passava inalterado. Até que em certa madrugada, ansiosa para concluir suas obrigações e se recolher, lavava alguns copos na precária cozinha do bar, quando Pedro, após fechar as portas, aproximou-se e sussurrou, quase ao seu ouvido:

– De hoje não passa, vou meter em você!

Percebendo o grau de embriaguez em que se encontrava o homem e já habituada a superar situações até mais difíceis, não se abalou. Mas ele falava sério! Subitamente, deteu-a nos braços, soltou-lhe os cabelos e pôs-se a acariciar-lhe o corpo com mãos e lábios. Ela apenas suspirou, não demonstrando a menor reação. Portou-se feito uma estátua. Sabia que de nada adiantaria tentar enfrentá-lo, por pura desproporcionalidade física. Sem considerar que ainda correria o risco de perder o emprego. Apesar de repugnada com os odores fortes de álcool, suor e urina que dele exalavam, deixou-se à mercê de suas vontades.

A partir de então, episódios semelhantes aconteciam quase que diariamente e aos poucos, sem se dar conta, Cátia foi se tornando propriedade de Pedro, algo assim como um instrumento de múltiplas utilidades, uma verdadeira escrava que se restringia a obedecer a comandos. Ele já não queria que ela se aproximasse do balcão, para que nenhum malandro a molestasse mais. Passava dia e noite se desdobrando entre as quatro paredes quentes da cozinha e as do quarto escuro do dono do bar. Curiosamente, aquela situação, de alguma forma, agradava-a. Suspeitava até que o amava. De um jeito incompreensível, é verdade.

Mas num de seus ataques de macho excitado, não se contendo com o sexo brutal que praticava na mulher, o asqueroso patrão, muito bêbado, empurrou-a até a porta do quarto, afastou-se, sentou-se na cama e ordenou que ela se arrastasse no piso de cimento grosso, ao seu encontro. Cátia relutou, chorou, implorou para que ele não a humilhasse tanto e o que recebeu foi um forte soco no rosto. Não teve escolha. Esfolou seios, braços, ventre e pernas, que se raspavam sobre a aspereza do piso. As feridas ardiam muito! Depois de gargalhadas e urros de prazer, vencido pela embriaguez, Pedro adormeceu.

Foi durante a madrugada que ele viveu a experiência mais assustadora de sua vida! Um terrível pesadelo! Acordou sufocado, como se algo o espremesse. Ao perceber o que acontecia, desesperou-se! Uma enorme sucuri envolvia e apertava seu corpo com uma força absurda, tomava-lhe o ar, esmagava-lhe os órgãos internos, quebrava seus ossos. Quanto mais tentava mover-se, mais o bicho o comprimia, a ponto de não conseguir sequer mexer um dedo. Tentava gritar, vomitar em desespero, mas a voz não saía, o vômito não saía! A espessa e pesada massa cilíndrica o constringia lenta e sadicamente, com o requinte, com o cuidado, que só o ódio e a fome de vingança são capazes de alcançar. Fitou os olhos da serpente, implorando clemência e avassalador foi seu espanto ao reconhecer os olhos de Cátia, que se comunicavam com ele:

– Você chupou minha vida, meu resto de dignidade, meu orgulho, depois de me iludir com seu amparo. Pegou até minha identidade, virei uma coisa sua, sem direito a ter desejo, ideia, pensamento meu. O que sou agora foi você mesmo quem criou, quando tirou de mim a condição de gente e me transformou num réptil rastejante. Ai, que prazer eu sinto em esgotar o resto das minhas forças espremendo sua vida! Assim, devagar, pra que sofra bastante! Quero olhar pra sua cara de dor e de agonia até o último instante da minha existência!

Na medida que falava, a voz da sucuri, emanada pelos olhos, perdia intensidade. O homem já estava entregue.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 10/06/2013
Reeditado em 25/11/2018
Código do texto: T4334504
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