O HOMEM QUE VENDEU A CABEÇA

Não havia outra alternativa. Já não tinha quase nada dentro de casa que valesse mais que uns poucos trocados. Os últimos discos de vinil ficaram no sebo há uma semana, por uma ninharia. Já os comera em duas refeições mais reforçadas que fizera desde então. Não venderia a televisão, pois precisaria estar atento ao que acontecia na sua cidade. Precisaria continuar acompanhando, como espectador solitário, as hordas desafortunadas que dia a dia engrossavam as filas dos albergues em busca da sopa rala de cada início de noite.

Olhava aquilo tudo com profunda apreensão e angústia. Não queria confessar a si mesmo que caminhava para o mesmo destino. Abominava a idéia de que cedo ou tarde, pelo que tudo indicava, teria que se juntar às crescentes multidões maltrapilhas que perambulavam pelas ruas. Dirigiu-se ao banheiro, apoiou as mãos sobre a pia e mirou seu rosto no espelho. Olheiras começavam a denunciar seu estágio decadente. Os cabelos em desalinho ainda seria possível de remediar com um pente, mas o olhos e o encovar da fácies eram delatores impiedosos.

Olhou-se longamente. Não havia mesmo outra saída. Teria que agir antes que fosse tarde demais e não valesse mais a pena aquela última oportunidade. Ergueu vagarosamente ambas as mãos até a altura das têmporas. Comprimiu a cabeça com toda a força de que dispunha e num movimento repentino e brusco, torceu-a sobre o pescoço, primeiro para a direita e logo para o outro lado. Pronto!

Desceu à rua, com o embrulho debaixo do braço. Sobre o pescoço colocou um chapéu de abas caídas, para não chamar a atenção dos vizinhos. Eles não entenderiam. Jamais precisariam saber o que havia acontecido. Cada um tinha lá seus problemas, mas nenhum aparentava tamanha decadência. Por isso preferiu esconder seu ato e saiu sorrateiramente. Quase uma fuga. Rumou para o centro da cidade, onde as pessoas eram todas anônimas.

Não foi difícil encontrar interessados por sua cabeça. Afinal, não era só a aparência que contava numa negociação dessas, mas o conteúdo. Ele fez com que sua cabeça desse repetidas demonstrações do quanto possuía de conteúdo. Logo uma mulher aproximou-se da esquina onde havia se postado durante toda a manhã. Também ela tinha um embrulho debaixo do braço. De aparência saudável e roupas limpas, a mulher em nada se parecia com a maioria dos que transitavam pelo lugar. Evidentemente vinha negociar em nome de terceiros, pois ostentava um sorriso alvíssimo no rosto jovem emoldurado por uma cabeleira loura e perfumada. Sua própria cabeça.

A negociação não demorou muito, pois a mulher propunha uma troca bastante vantajosa. Ofereceu boa soma em dinheiro além da cabeça jovem e sorridente que trazia no embrulho. Ele hesitou por um instante, pois sabia que a troca significaria a perda de todo seu referencial. Mas não havia mais como reverter a situação. A decisão já fora tomada. Conferiu o dinheiro que a mulher lhe estendia. Apanhou a nova cabeça. Colocou-a sobre o pescoço e ajeitou-a no lugar. Depois olhou mais uma vez para seus antigos olhos, para os cabelos em desalinho. Girou nos calcanhares e misturou-se à multidão.

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(Publicado na Antologia Paulista - Volume V - Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Rumo Editorial - SP - 2005)