ASAS
Acomodava com extrema dificuldade suas asas azuis no capote negro. Que alívio chegar em casa e libertá-las do cárcere de tecido! Tão logo desnudas, iniciaram um agitar-se ávido para alcançar os ares e nuvens. Ao menor vestígio de emoção, Marcelo incitava-se, de maneira quase incontrolável, a alçar voo. E naquela bela noite, as emoções levaram-no ao delírio! Conhecer Tales foi a maior dádiva que recebera na vida! Momentos encantados passaram juntos... Identificaram-se profundamente... Assim, como parceiros de séculos remotos... Existências complementares... Não fossem as asas estarem aprisionadas no traje torturante, não conseguiria manter-se ao chão. Por vezes, sentiu como se flutuasse.
Porém, após alguns minutos de devaneios e ilusões, voltou a si. Que tolice, jamais teria o direito de viver um amor, ninguém o aceitaria alado; e além disso, como inebriar-se em corpo alheio, arrebatado por alucinante desejo? Como copular sem entregar-se à emoção? Voaria... Voaria alto antes mesmo de atingir o ápice do prazer. Gostava, sim, das asas, que lhe proporcionavam a mais pura liberdade, as mais intensas delícias! Os passeios sobre oceanos e florestas, descansos em torres de catedrais suntuosas, em monumentos históricos de todo o planeta, rasantes com aves migratórias... Enfim, voar era um sagrado privilégio! Mas a partir de Tales, queria outras possibilidades de voo.
O enlace afetivo se intensificava. Era cada vez mais difícil esconder as asas. Não havia alternativa, contaria tudo a Tales. Marcaram encontro numa pousada construída ao pé de uma vasta montanha. Marcelo não perdeu tempo; assim que o parceiro chegou, iniciou a conversa:
– Tenho algo de muito sério para lhe dizer. E de assustador para lhe mostrar. Não posso dedicar-me plenamente ao seu amor, minhas emoções não me permitem.
– Sobre o que está falando, Marcelo? Não me assuste!
– É que nasci com um par de asas azuis que me ascendem ao ar sempre que sou tomado por emoções. Para mantê-las inertes, tenho que amarrá-las e encerrá-las sob este maldito capote. Mas agora que está presente em minha vida, elas estão me estorvando de maneira insuportável! Quero a liberdade de amá-lo, manter-me com os pés no chão. Quero que meus voos sejam apenas pelo encantamento de estar junto a você. Mas não se aflija, Tales, estou disposto a decepá-las! Desejo muito que faça isso por mim!
– Eu? Cortar suas asas?
– Sim, seria como um pacto de amor.
– Jamais cometeria tamanho absurdo, Marcelo. Também tenho algo a lhe mostrar. Veja.
Livrando-se do inseparável e largo moletom, apresentou ao amado um belo par de asas brancas.
– Também nasci alado, também adejo pelos ares, também sou entregue aos céus por minhas emoções. Como você, eu era condenado a voos solitários. Suas asas são lindas! Sabia que também as tinha, só não sabia que eram azuis.
– Como sabia?
– Você não as escondia tão bem assim... – e sorriu. – Marcelo, é o complemento do meu ser, somos especiais, um existe para não permitir que o outro fique só no mundo.
Com as asas nuas, beijaram-se. Através da janela aberta, imediatamente ganharam os ares, por sobre as altíssimas montanhas verdejantes, espalharam sementes, imersos no mais profundo sentimento de que já se teve notícia nesta Terra. As asas brancas de Tales, vistas aqui do chão, pareciam nuvens moventes, desenhando estrelas e corações, enquanto que as azuis de Marcelo confundiam-se com o próprio céu. E assim, como nuvem a penetrar no céu, como o céu a se apossar da nuvem, viveram intensamente suas mais nobres emoções. Voando... Voando... Voando...