O LOBO

Enquanto tocava os extremos dos dedos no pelame que, dia após dia, crescia fartamente no peito, lembrava-se de quando começara tudo aquilo...

O almoço com Nádia; a carne vermelha no espeto, a carne sangrando, o lábio vermelho, a fome, a sanha, o sangue, o lábio de Nádia... O desejo incontrolável de devorar a carne, beijar o lábio, abocanhar o vermelho de Nádia...

Em seguida, veio-lhe à memória o dia em que Celso chamou-o de imbecil. A ira! A sede instintiva de cravar-lhe os dentes no pescoço, nos ombros. Arrancar-lhe o coração! Ah, Celso.. Ah, não podia admitir que outro invadisse seu território daquela maneira, que não respeitasse o cheiro de sua urina. Ah, Celso... Como quis aquelas vísceras! Mas alguns camaradas do trabalho conseguiram acalmá-lo, levá-lo para longe dali. Afinal, e se perdesse o emprego? Mas a sede pelo coração de Celso jamais abandonara-lhe os sentidos...

Depois, as caçadas noturnas pela cidade, a voracidade, as fintas nos bares, os quartos amantes, roubos de fomentos alheios, a violência ao desejar o alheio... A vida selvagem no inferno urbano.

Sob tais lembranças entorpecidas, premiu os enormes caninos nas próprias mãos. Sangrou-se. Fitou o sangue, fitou as mãos. O peito também sangrava. E só então percebeu que seus dedos tornaram-se garras!

Àquela altura, disfarces não seriam mais possíveis, haveria de isolar-se. Desesperado, sentou-se fortemente no sofá. Algo de novo o incomodava. Tocou-se. Meu Deus! Notou que uma cauda brotava-lhe ávida, abaixo das costas! Começou a curvar-se de forma incontrolável, estendendo o dorso peludo, lançando braços e mãos ao chão, patas dianteiras. Quadrúpede, pôs-se a correr em círculos pela casa, até descobrir a janela aberta e vencê-la, a partir de um formidável salto canídeo! E ganhou as ruas, atravessou avenidas, seguiu estradas, conseguiu a mata...

Restavam-lhe os uivos solitários na montanha sob a lua. Definitivamente, ele era um lobo; ele era o que nascera para ser.

(Parágrafo final opcional)

Que alívio voltar à forma primitiva! Abriu os olhos bem devagar, a fim de sorver toda a delícia do momento. Foi quando sentiu o macio repugnante do colchão e o cheiro não menos nauseabundo de lavanda em lençóis e fronhas. Tudo não passara de um sonho. Sim, o lobo permanecia homem; terrivelmente homem.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 05/09/2012
Reeditado em 10/08/2018
Código do texto: T3866308
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