Mil Sonhos de Amor
“Moça, eu sei que já não é pura, teu passado é tão forte pode até machucar.” (Wando - musica Moça).
Está frio em São José dos Campos.
No relógio da igreja matriz do lado da rodoviária soa vinte e uma horas.
Um tanto afastado, no hotel barato pra encontros e programas, dentro do quarto desajeitado, cama de madeira, lençol barato cheirando o ultimo casal, realiza o amor profissional. Meia hora o acordo do amor profissional. Não há tempo para cerimônias, preliminares, beijinhos no cangote e beijos de língua. Não há beijos de língua, mesmo que o parceiro queira. A não ser forçado, contrariando a pessoa, ou seja, a mulher.
Meia hora de amor profissional será agradável ou desagradável. Também especial ou violento. Depende da pessoa que paga. No fim, mal pergunta o nome, joga na cama o preço do serviço, veste e nem diz boa noite.
Esse ao menos perguntou o nome. Ouviu pronunciar assim: “Joana.” Bastaria cinco minutos pra esquecer e ficaria chato pedir para repeti-lo.
Hoje é “Joana”, ontem era “Priscilla”, amanhã será “Marcela”.
“Alguém se importa de lembrar nome de puta?” Comentou uma profissional de cinqüenta anos, paranaense, quase vinte e seis anos de profissão.
Por isso a cada noite possui nomes diferentes. Não muda a personalidade. A cor dos olhos e do cabelo são os mesmos. De vez em quanto aplica um corte, mas nada radical.
O cliente da noite era o segundo. Um cara alto ruivo, de olhos verdes, idade de trinta anos pra cima. Surgiu do nada, na direção da Humaitá e entrou na Praça Afonso Pena.
O avistou de longe, do lado da amiga que encolhida de frio vociferava palavrões e reclamava na friagem.
De mansinho chegou, como não querendo nada. Perguntou o valor e os minutos. “Cinqüenta e meia hora.” Respondeu. Com o olhar arregalado e o coração batendo aguardou a decisão. A amiga se afastou, procurando fugir do frio. Pronto, lá foram para o hotel. Ela na frente, ele andando atrás. Estava acostumada com o medo dos homens e a desajeitada descrição deles.
Cinqüenta o valor combinado. Se recebesse ligação no celular o preço aumentava vinte reais. Em caso de motel chegava a cem. E o horário preestabelecido de meia hora.
Tudo é rápido, sem bobear. Cada um tirando a roupa. O dele é mais fácil, o dela arrasta um pouco mais. Antes liga o rádio, qualquer estação no Vale do Paraíba. “Beija eu! Beija eu! Beija eu, me beija, deixa o que seja ser...” “Muda isso aí!” Ordena como se a música fosse uma lembrança desagradável. Ela não dá bola. Deixa a música sossegada. “Deita.” Indica a cama pra ele deitar. O amor profissional começa. “Deixa que eu seja o céu e receba o que seja seu. Anoiteça e amanheça eu...” (1)
Tem um jeito de Carmem de Bizet. Talvez estivessem ligadas no destino. Infelizes ou felizes nas mãos dos homens. No amor e na vida.
Não tinha noção de como apareceu. Quanto percebeu estava na cama com o cliente. E assim prosseguiu de bom a pior, de agradável e desagradável.
Isso aconteceu há muito tempo. Quando soube do progresso em relação ao serviço, juntou-se com outras, novas e velhas. Jovens inexperientes e donas pra lá de experientes. Todas possuem seus valores. Os minutos de prazer estabelecido. Meia hora, sem reclamar. Não era um tempo bom, porque tinha que ser corrido, mecanicamente amor realizado por pessoas estranhas.
E o local é na Praça Afonso Pena.
Descendo a Rua 15 de Novembro, na Avenida Nelson D’Ávila se encontra outro local de mulheres de amor profissional. Os preços eram um pouco mais salgados das que tinham ponto na Praça Afonso Pena.
Na Nelson D’Ávila tudo se misturava a boates, hotéis e prostitutas de rua. Essas desprezadas e agredidas pelas mulheres que realizavam os serviços para as boates.
Havia divergências, tanto que as mulheres da Praça não se deslocavam na avenida para trabalhar. Um acordo e um pacto não muito esclarecido.
E dessa forma ela apareceu, sem lembrar de onde veio. Mentia ao perguntarem da origem da cidade. Dizia que nasceu pelos lados de Sorocaba, que saiu bem novinha, perdida no mundo e sem ninguém.
Mentia, pois não se recorda de qual lado viera.
Como havia revelado, tinha o jeito de Carmem de Bizet. Cabelo cacheado e escuro, olhos claros, de corpo provocante e uma idade de vinte e cinco a mais.
Sabe dar prazer muito bem. Traz a linha dominadora, adora um puxar de cabelo do macho e de escutar palavrões. Não aceita brutalidades e tapas na cara, quer amor gostoso e prazeroso.
É a sua rotina, até nos feriados e idas ao litoral norte. Sem férias, descanso, futuro indeterminado. Em todo o caso, pra quê pensar no futuro? “Não penso. Vivo o hoje e o hoje diz que está muito bem pra mim.”
Pronto. Termina o ato, encerra o programa. O ruivo na expressão do rosto mostra-se satisfeito pelo excelente serviço. O horário ultrapassou um pouquinho. Dois minutos. Nada pra se preocupar.
Ainda deitados e cansados, encara o rosto dela. Mima com elogios. “Obrigada, meu querido!” Se pudesse ficaria a noite inteira no quarto. “Conhece o trato, querido. E estamos passando do horário.”
Apressados, se vestem. Ele começa um assunto pra encobrir o silêncio, ela apenas concorda, sem aprofundar. O rádio toca seu romantismo sem medo: “Aaaaaiii... Quanto querer, cabe em meu coração. Aaaaaaiii... Me faz sofrer, faz que me mata e se não mata fere...” (2)
Abre a carteira de couro e entrega o valor combinado. Pega a nota, agradece sorrindo. “Muito obrigada, meu bem.”
Antes da despedida e deixar o quarto, presenteia com uma revelação: “Não sei como dizer... nesta noite, entrou no meu sonho. Era você, tão real como aqui na minha frente. Não tenho dúvidas que a mulher que sonhei era você.” E se despede: “Até.”
Não havia surpresa no olhar. Senta na cama, busca motivos pra ficar. Saiba que uma parte do que o ruivo revelou surtiu efeito. Mínimas, poucas ou maiores, só o tempo responderá. Não foi o único, há clientes fixos que sonharam, não somente eles, relatos de desconhecidos revelando o mesmo assunto. Até as companheiras de trabalho e a amiga. “Não sou lésbica, mas no sonho a gente transou bem gostoso. Uiii!” Contou a amiga num dia desses.
Batem na porta: “Precisam usar o quarto. Ligeiro aí!” “Já estou saindo!”.
E o rádio é calado no auge do refrão: “Eu quis lutar contra o poder do amor, cai nos pés do vencedor para ser serviçal de um samurai, mas eu tô tão feliz, dizem que o amor atrai...”
No banheiro, lava o rosto. Uma, duas, três vezes. Examina a bolsa. Celular, escova de dente, escova de cabelo, batom, preservativos, uma conta de luz de data atrasada e Halls de maçã verde. Ajeita a saia preta, o cinto, as botas e sai. Não está bem. No caminho encontra o casal. A moça lança sorriso, conhecia-a de longe. Define-a como falsa pelo sorriso. Sai cabisbaixa pelo guichê, toma a calçada na direção da Praça. Encolhe-se, o frio terrivelmente aumentou, estava quentinho lá no quarto. Não está bem... “Não tenho dúvidas que a mulher que sonhei era você.” De longe, antes de atravessar a rua, avista a amiga, que dança pra lá pra cá. “E aí como foi lá com o cara?” “Foi tudo jóia. Nada demais.”
A amiga estranha à maneira como a pergunta foi respondida. “Vou embora.” “Embora? São dez horas ainda.” “Não estou me sentindo bem...” “O ruivo te agrediu?” “ Não! Que isso, foi muito gentil. É que não estou bem mesmo.”
“Tá bom, menina. Se cuida, viu? Vá na paz.” “Obrigada. Tome cuidado. Beijos.” “Beijos!”
Na Praça do lado direito fica os carrinhos de hot dog e lanches, pede um para comer em casa. Vê a amiga atravessar a rua com um rapaz moreno para o hotel. Estão bem íntimos pela conversa animada entre eles. Entregado o lanche, desce toda a Rua 15, encontra outras mulheres e travestis circulando as enormes e proporcionais nádegas. São José dos Campos se transformou num ótimo comércio sexual. Dizem que a filha do prefeito também entrou no ramo. Dizem, pois não há provas de que o boato seja verdadeiro.
O comércio sexual rende excelentes lucros para a cidade. Quadruplicou a quantidade de turistas. São do sul, do sudoeste, norte e nordeste. Com o aumento de turistas, aumentou as vagas de mulheres, jovens e velhas para o serviço de amor profissional.
Com o apoio da prefeitura as mulheres recebem carteira profissional, direito a exames mensais em consultórios médicos particulares, cestas básicas e seguro desemprego, caso houver demissões. Felizmente nunca precisou.
Só não ganham férias e folgas. De domingo a domingo na Praça Afonso Pena. De dia uma leva de mulheres. De noite outra leva. Muitas chegam determinadas a conquistar uma vida boa. São casadas, solteiras, separadas, noivas, viúvas e estudantes. Enxerga o mercado sexual como ótimo negócio lucrativo.
Ainda não se sente bem. Entra em casa. Direto ao banheiro troca de roupa, tira o batom, a maquiagem, sabonete para retirar o resto de perfume. Encara o espelho, de olhar perdido, confuso e pensando o porquê de estar ali. “Não tenho dúvidas que a mulher que sonhei era você...” Balança a cabeça inconformada. “Não! Foi uma cantada, só isso. Besteira, uma cantada pra impressionar. É isso.”
Havia mais gente que contaram do sonho. “Besteira. Tudo besteira!”
Na cozinha abre a geladeira e retira o jarro de suco de laranja em pó. Senta à mesa e desembrulha o lanche. Na primeira mordida, repara que o silêncio incomoda. Em cima da geladeira o rádio. Liga-o. “Olha. Será que ela é de louça. Será que é de éter. Será que é loucura. Será que é cenário. A casa da atriz.” (3)
Volta a comer. Uma mordida e começa. Não está bem. Começa. A casa roda, gira vertigem. Assusta, apavora e cai. Gira, o mundo gira. A dor no corpo, alguma coisa querendo sair, algo transmutando.
No chão se contorce. A dor é tremenda. Quer gritar e expelir pra fora. As costas formigam, algo agita, algo ferve como água fervida. Não há forças e a música continua: “Se ela mora num arranha-céu. E se as paredes são feitas de giz. E se ela chora num quarto de hotel. E se eu pudesse entrar na sua vida.”
Não consegue se erguer, arrasta no chão, desesperada tenta levantar, derruba cadeira. As costas formigam, querem abrir, desejando rasgar a pele.
E arrasta na dor. Grita, grita, pois a dor é maior. Brotam asas nas costas, asas de morcego coloridas de vermelho: “Sim, me leva pra sempre, Beatriz. Me ensina a não andar com os pés no chão. Para sempre é sempre um triz.”
No processo, a roupa se perde. Nua no chão. A boca muda. Sente os dentes caninos pontiagudos e enormes. Não é mais Joana, Marcela e Priscilla. O que será agora? A dor passa. Fica de pé, corre no espelho. Não é a moça, a que possui jeitos de Carmem de Bizet.
Chega ao espelho, asas de morcego, na boca, os dentes modificados. Não compreende, não encontra respostas para responder a mudança. Deseja voar. Sim, deseja voar, no céu da noite de São José dos Campos. Passear no ar e no frio, viajar nas trevas da cidade e invadir sonhos. Exato, invadir sonhos, despertar libidos. Prazer, gozo, libido. Não sabe explicar o que sente, sabe que deseja, a vontade comanda e clama. É forte, que libera fogo no corpo. Voar, voar, voar dama alada, ganha a noite, entra nos sonhos da gente.
Não há quem possa impedi-la e toma o céu, pinta no rosto o desejo mais carnal. “Ai, diz quantos desastres tem na minha mão. Diz se é perigoso a gente ser feliz.”
...
A meia-noite brilha poesia na noite fria.
A criatura voa. Olhos vermelhos sedentos por sonhos e prazeres.
Eis que surge o primeiro sonho: Um viúvo de nome Leomar, sessenta e seis anos. Perdeu a esposa onze anos atrás no trágico acidente automobilístico na Presidente Dutra, proximidades de Jacareí. Cliente há dois anos. Trás ar preocupante, é nervoso. Sempre o acalma, com massagens, às vezes não há penetração. O velho não reclama, adora a maneira calma como é tratado. Nunca reclamou da hora. Tem dias que não chega ao ato final. Não se decepciona, diz animado que no outro dia conseguirá. Ri da desgraça, um homem feliz, é que importa.
No sonho não é mais senhor de sessenta anos. É jovem viril de vinte anos, iluminado de saúde, pele bonita, forte e atraente.
Nu espera. Amante que chega e abre os braços.
“Aqui, Leomar... aqui por você...” “Minha amada... veio pra mim? Ó, doce amada...” “ Sim, Leomar. Vim pra te dar amor...”
Corre. Pra ser apenas dele. Ser possuída e amada. Um sonho de amor vermelho.
No segundo sonho vestida de cigana, ela dança. Dança sensual e provocante. Chama atenção da pessoa, o nome é Milton, trinta e dois anos, casado e com casal de filhos. Acostumado a buscar amor profissional. Teve várias amantes, hoje não troca nenhuma por ela, que tocou seu coração. Ganhou a paixão do cliente, que não faz mais amor com a esposa. “Não amor... com ela nunca mais...” Contara certa vez no hotel. Entregou todo o amor, paixão e vida.
Deitado, vê a amante ritualizar o seu despir. Cai vestido, seios acusam, a vulva perfumada e se derrama na cama, leito perfumado de mel. Passeiam beijos vorazes, animais, ardentes, toques e caricias nos seios. Deita-a na cama, penetra, ó, gemidos! Tudo na entrega, envolvido de mil sonhos de amor...
E da entrega arrasta canção que envolve os amantes. Ode feminina de poesia: “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem. Que é pra te dar coragem pra seguir viagem. Quando a noite vem...” (4)
No ritmo da música bailam. Não! Esse amor não é profissional. No sonho, é paixão, é calor, é vida, é real.
“E também pra me perpetuar em tua escrava. Que você pega, esfrega, nega, mas não lava...”
E no terceiro sonho, tudo é surreal...
Expele da boca fumaça que encobre o rosto. Embriagada e nua, delira. Quem lançou, sorri. Não possui definições, ora é branco, ora é moreno. Somente o corpo magro e a altura são os mesmo. Estão na posição de lótus, no cheiro de jasmim e rosas brancas e incenso de purificação. Ele vibra energia, o corpo irradia luz invisível. Na vida real, o rapaz de vinte anos se chama Daniel. Na vida real é um jovem tímido estudante que vê no amor profissional a maneira direta para a vontade sexual. Mas no mundo real, é péssimo amante. Inexperiente, nervoso e depressivo, que chega a atormentar com crises de choros. No sonho, traz sabedoria, homem que comanda, é mágico e surreal.
Esticam os braços, juntam-se as mãos e as palmas. Encarando-se, concentram-se e descansam os olhos. Existe o silêncio. É um extenso salão vazio de cor de caramelo. Sem móveis, no chão o tapete, incenso e cheiro de jasmim e rosas brancas. Respiram, concentração, mãos firmes apertam. Concentração...
Tudo é surreal... Quando as almas despertam a flutuar. Macho e fêmea flutuam. Almas que brincam de namorar, rodopiam o salão, beijando e acariciando. E no próprio ar acasalam, bailam no ar, poetizam mil sonhos de amor...
Ela penetrou mil sonhos. De clientes e homens desconhecidos. Os mais penetrados foram os mais idosos, que nos sonhos voltaram à jovialidade. Dos jovens os mais doces e surreais prazeres, dos homens de trinta pra cima, amor selvagem, animal e mágico. Para muitos, Joana, Marcela e Priscilla. Pouco importa qual nome estaria nela, queriam ser amados, seduzidos e satisfeitos e que não terminasse ali no termino do ato. Perpetuasse por infinitos e infinitos sonhos, para eternizar o enlace.
Por fim, o sonho que fecha o ciclo. Desfecho das maravilhas que presenciou. O rapaz ruivo, o ultimo do hotel. Sente algo por ele. Amor? Não, não consegue decifrar o sentimento. Quer ficar próximo, ser abraçada, sentir o corpo e o cheiro do ruivo. É isso que faz, corre nua, balançando o cabelo e os seios. Nua como Eva e Carmem de Bizet, pra se entregar, pra ser amada.
Mas eis que a impede. Estica o braço para impedi-la de pular nos braços dele.
Ela não entende. Por que a impediu?
Desaparece, repetindo as palavras como mantra: “Não tenho dúvidas, que a mulher que sonhei era você. Não tenho dúvidas, que a mulher que sonhei era você...”
...
Acorda no meio da cozinha. O rádio tocando: “Moça eu sei que já não é pura, teu passado é tão forte pode até machucar.” (5)
Sem entender, porque acordou ali, na cozinha e nua. O celular no vibratório toca. Alguém mandou mensagem. Consegue pega-lo. Mensagens e ligações da amiga. Várias chamadas. Assusta-se ao verificar a data. Três dias? Três dias adormecida? Liga a caixa-postal do celular. A voz da amiga é de preocupação: “Oi, que aconteceu? Faz dois dias que não aparece na praça. Estou preocupada, menina. Atende logo o celular. Beijos, te adoro.”
Confusa, não sabe o que houve. O que fez e o que fizeram com ela.
A cadeira no chão, o lanche e o copo de suco na mesa. Confuso. Não recorda dos dias passados.
“O que eu fiz?” É a pergunta que sobra. Porém, o dia se mostra vivo, mas não sabe por onde começar a lembrar dos dias perdidos.
“O que eu fiz?”
E o rádio desfila o seu romantismo: “Eu quero me enrolar nos teus cabelos, abraçar teu corpo inteiro, morrer de amor, de amor me perder.”
Nota:
(1) Trecho da música Beija Eu de Marisa Monte.
(2) Trecho da Música Samurai de Djavan.
(3) Trecho da música Beatriz de Chico buarque de Holanda.
(4) Trecho da música Tatuagem de Chico Buarque de Holanda.
(5) Trecho da música Moça de Wando.
Errata: Escrevi Carmem.
Correto: Carmen.