Conectado
Milhares de fotos e vídeos estavam sendo postadas online, era domingo, quando o Facebook parou. Estava uma tarde de telas brilhantes e olhos vivos, olhos que passeavam entre as flores de status e folhagens de fotos alheias.
A partir desta paisagem e desta circunstância, gostaria de falar sobre uma personagem em particular, um ser atemporal, com mil faces, e gestos, e jeitos, e manias, e desejos, e dores, e cedes, e olhos, e bocas, e casas: um criatura oriundo de todos nós.
Este ser—de mil facetas—com incontáveis horas em frete a atalhos à tudo e todos os mundos, sem sair do lugar, viajava. Haviam coisas comuns espalhadas sobre seu habitante natural; em sua mesa: canetas, papeis, clips, uma xícara de café, um prato, um garfo... e no meio deste cenário, os seus dedos, que rápidos e sorrateiros dedilhavam nas janelas cyber-sociais. Ele, que aqui vamos chamar de Todomundo, tinha o peito aberto, os olhos atentos, diferentes sonhos e desejos, semelhante corpo e desafios; sentado em diferentes lugares da casa, monologava momentos tridimensionais.
A rede parou! Simplesmente, sem mais nem por que, parou! Mas se tratando de internet, não o surpreendeu tal incidente. Todomundo foi andar um pouco, lembrar de como o mundo realmente era. Ele foi dar uma volta no quarteirão donde morava, entretanto não achou nada interessante para compartilhar. Ele voltou ao computador e buscou outras redes sociais, estas também, pararam. Aí Todomundo começou a se desesperar, por que a sua vida se encontrava lá, nas entranhas das comunidades cibernéticas. Saiu na avenida comercial do seu bairro para espairecer a mente, saiu, mas sentia que algo lhe puxava de volta à tela. Continuou nas ruas estreitas e cheias de lojas percebendo que tinha mais pessoas do que no normal.–Como pode ser, todos essas pessoas, “os meus amigos virtuais”, em 3D, hologramas andando e comendo?– Falou consigo mesmo com certa ironia e frustação de não estar teclando abordo do seu Laptop. O dia estava nublado, sem muita vitalidade no ar; um daqueles dias que ele, Todomundo, ficava em frente ao computador buscando preencher o seu vazio inefável. Ele começou a achar esse mundo, com alguns minutos sem conectividade, um tanto sem graça.
Passaram-se alguns dias com o Facebook fora do ar, e já se ouviam boatos e até matérias nos telejornais sobre o caso de depressão nos usuários. Podia-se ver pessoas com tic-nervoso atravessando as ruas, nos supermercados, nas escolas, sempre com os dedos mexendo como se estivesse teclando algo. Um mês se passou e já falavam em correntes casos de suicídio. As pessoas já não tinha mais nada para fazer; tudo que elas faziam estava no Facebook e em outras redes absorvedoras. Todas as razões nas suas vidas estavam sempre em correr para publicar coisas à serem curtidas e comentadas, eventualmente. Ninguém soube muito bem o que tinha acontecido com a rede. Se ouvia falar em um grupo de hackers que se juntaram para derrubá-la, pois acreditavam que consumia silenciosamente os nossos dias. O caso dos hackers não foi muito bem apurado, e a noite caiu em mais um dia em que as pessoas ficavam desconectadas.
Todomundo esteve, com muita frequência, atualizando o navegador para ver se algo mudava. As lojas dobraram a produção da tecla F5 chegando a abrir uma loja no bairro de Todomundo chamada: “F5 para Todomundo–Atendendo seu consumo”, era o slogan.
Depois de um mês, Todomundo resolveu, contra a sua própria natureza, passear no parque que sempre esteve em frente a sua casa e que nunca lhe tinha dado muita atenção. Pegou um barco—um tipo de caiaque—e começou a entrar no lago que lá havia. Todomundo resolveu escutar o som dos pássaros e o som que as aguas faziam quando remando. Foi para pensar um pouco, para suprir a falta dos amigos. O lago estava coberto por uma nevoa e em meio a ela, ele começou a perceber que a vida crescia, ali, a vida realmente acontecia. As aves que cortavam a nevoa era uma surpresa viva para Todomundo; as arvores lhe inspiravam; o vento invadia seu corpo lhe deixando leve; o sol—mesmo que pouco naquele momento— revitalizava-o e os saltos dos peixes lhe trazia sentimentos primitivos. Todo esse conjunto de seres, incluindo ele mesmo, estava sendo a verdadeira vida. Ele começou a pensar, queria falar à sigo mesmo tudo aquilo que guardava no subconsciente da sua inquietação. Queria desabafar a frustação que a cada dia sentiu quando a cada hora perdida em frente a tela poderia ser um momento produtivo, criativo e empolgante; onde cada comentário nas redes cyber-sociais seria o último e quando percebera, já era tarde demais: já atravessara a noite; já varara a madrugada; já dobrara a semana com um vazio imaterial. A paisagem no lago era funesta e cheia de mistério quando Todomundo quebrou o silencio falando:
— É fácil respirar essa brisa; difícil é falar comigo mesmo sem distrações, sem plateia. Meu barco, meu barquinho, para onde me levastes nessa vida emaranhada de tempo, nesse mundo magnético?! – O vento em forma de brisa era suave quando Todomundo pensava com seu barco e consigo mesmo. A atmosfera lhe conduziu à uma continua reflexão:
— As horas tem se perdido entre os meus dedos, meu barquinho, já não sei quando é manhã, quando é tarde, quando é noite. É tudo uma coisa só quando estou lá; é tudo muito incolor, imemorável, esquecível. Estou distantes das coisas matérias… você, meu barquinho, nesse lugar quieto, é real, é palpáveis como a natureza que nos cerca. – O lago era silencioso quando uma ave cortou a nevoa e mergulhou na água. Todomundo assistiu àquilo e esperou quieto a sua volta, segredando:
— O tempo mais valioso, aquele que mergulha em meu peito, é quando estou falando com os amigos… — A ave voltou do fundo do lago e trouxe algo consigo, um peixe. Olhando-a, orgulhosa da pesca, e o peixe, que vivia o seu último suspiro, ele continuou falando naquela direção, para a ave ou para o peixe:
— Eu queria, como você, ter todo a liberdade do mundo… Minha fome é de tempo, e mesmo com tanto, sou miserável. Estou engolido o tempo pelos olhos. – O pássaro com o peixe no bico, como que querendo entende-lo, girou a cabeça em sua direção. Nosso ser de mil facetas naquele silencio inóspito buscou fazer a ave entendida, clarificou:
— O que mais me intriga, me deprime, me faz ver o meu fim como zumbi cyber-social, um ser paralítico mental, improdutivo funesto, uma ovelha no rebanho do capitalismo neoliberal... O que mais realmente me assusta... — reteve a voz por dois segundos sentindo um calor dum nó que lhe subia pela goela:
— .... é a falta de autonomia que eu tenho em frente as redes sociais, em frente a esse jogo humano, essa fazenda onde somos ovelhas correndo risonhas nas gramas que crescem debaixo dos nossos dedos e sobre os nossos olhos... — A ave ainda sem entender, sacudiu a água das penas com certo charme e inocência. Ele como num clarão de desespero atirou a voz na nevoa criando um eco que voltava para si:
— Está tudo planejado, tudo organizado para nos controlar… veja como todo mundo está junto sendo adestrado, todos escravizados neste leilão de quem dar mais por nossos segredos, por nossos rastros, por nossos desejos... Quero tanto estar lá, que já não sei se é meu o desejo. — Os olhos pestanejou sobre o eco que silenciava. A ave assustada engoliu o peixe e voou rente a água. Foi para a floresta onde sua alma de animal–como a nossa–continuou conectada. Todomundo sozinho, batia nas bordas do barco dizendo:
— Sou eu o sujeito e a vítima disso! Sou inconformado com o silêncio. Agora, aqui, eu posso sentir que estou ligado por um fio invisível a toda a vida, a toda a natureza, a minha natureza. Mas a grande questão é: o que eu posso fazer frente à essa droga que é injetada nos olhos e sai pelos dedos nas teclas? O que posso fazer com essa droga que me manipulação pela minha própria espontaneidade? — Todomundo caiu no lago escuro copiando a ação da ave pescadora, foi buscar a resposta. Mergulhou segurando a respiração e sentindo a textura da água, continuou em pensamentos:
— Lá, estou criando uma real vida-ilusória. Toda essa engenharia me controla, sempre me deixando ligado e conectado na pagina da saudade e do “divertimento”.–sentiu o lago–A água está fria. — Suas lagrimas, do nó na garganta, temperava a água doce e fresca; já não se sabia o que era lagrimas e o que era lago. Balbuciou:
—Estamos sentido saudade da saudade!
Soltou bolhas com outras palavras que não podiam ser ouvidas claramente… Avistou, por onde o sol clareava, um cardume de peixes falava entre si, palavras que ele não entendia. Todomundo tinha ao seu redor a luz do sol deixando a água verde. Relaxou o corpo e lentamente começou a nadar submerso, indo fundo…
— Matam a saudade! Contudo, ela quer saber sobre o outro,—nadou mais forte— sobre sua carne, o seu cheiro, os seus desejos: A saudade é o saber imaginário sobre o outro. — A primeira falta de ar apontou em seu peito, retrucou ignorando-a:
— Eu respiro a cada hora, palavras postas sobre a carne do pura prazer bestial. — Foi chegando onde a água se escurecia.
— Não tem luz no meu desejo de supor, de imaginar, de até sonhar como o outro estar ou estaria. Esse modismo tecnológico é um caminho obscuro que mata meus sentidos — Parou no meio do lago onde o escuro lhe rodeava. Olhou a superfície, o brilho do sol era pouco mas ainda se via um tom acinzentado, continuou:
— Eu gostaria de saber o seu pensamento, dos meus “amigos cyber sociais”, de crescer com os nossos pensamentos: pensamentos risonhos, sérios, bobos e sobre tudo, seus, meus, nossos pensamentos! — Todomundo com o ar se acabando, já sentia vontade de respirar a água.
— Absorvedor das nossas horas, absorvedor das nossas vidas. Aqui no fundo, percebo o quanto do mundo estava perdendo, como se o mundo todo estivesse numa tela. — Sorriu, deixando o último ar do seu peito escapar.
— Não quero ser mais um pedaço de carne que transforma cliques em dinheiro. Aqui no fundo meu corpo é inteiro… — O lago continuava fresco e Todomundo não resistiu à beber um pouco de sua água, engoliu sorrindo.
— Agora eu posso perceber que o mundo é profundo fora da tela; o mundo é realmente o mundo, quando você vive nele, fora da tela. Meu barquinho, meu barquinho, eu já tenho os remos nesse mar de opções internéticas. — Àquela profundidade o lago era completamente escuro. Todomundo nadava em outra direção para chegar ao barco, o sorriso se alongava em seus lábios.
— Eu não sou eu nas redes sociais! Uma figura minha vivi lá, eu–Todomundo–vivo aqui, entre as carnes e ossos, e lagos e peixes, e terra, e céu, e mar... — O corpo de Todomundo saciou sua cede e ficou sonolento no escuro profundo do lago...
— Meu barquinho, meu barquinho, não basta só estar vivo, precisamos vivenciar!