OS OUTROS DAQUI

OS OUTROS DAQUI

O problema aqui é a iluminação! Muito iluminada esta sala! Barulho, bem!... barulho há em todo lugar, mas aqui as coisas reverberam, vão além das paredes e vidraças, mas eu até que não tenho ouvido tanto barulho ultimamente. É como se o barulho já não fizesse parte da minha vida. Uma música de vez em quando ainda ouço, mas o resto... Nem vozes ouço direito. Às vezes me preocupo se estou meio surdo. Falei em vidraças? Vidraças!? Aqui nem se pode dizer que são vidraças. São umas janelinhas à antiga, aquele vitrozinho que é aberto e fechado por uma alavanca que faz ferro se encaixar em ferro. Não passa um corpo por esses vitrôs. Isso, vitrô. É vitrô, mais do que janelas. É feio, tudo feio. Mas...

Mas aqui é nosso lar. Desde há muitos anos, quando a fábrica era bem mais movimentada. Fábrica de relógio, a maquininha do tempo. Fabricava relógio, relógio, relógio. E o tempo não passava, não passava, não passava, como não passa agora. Epa, movimento, movimento demais, além do normal. Alguma coisa deve estar acontecendo, alguma coisa de especial. Empurram a gente, tomam nosso espaço. Precisamos reagir, exigir, gritar, ocupar, invadir. Que essa gente está pensando?! Quem eles pensam que são?! Nem disseram para o que vieram até hoje! E falam, falam, andam pra lá, andam pra cá. Parece um bando de desocupados! E vão tomando nosso espaço! Meus colegas parecem passivos, não lutam mais, aceitam a invasão!

E essa correria desrespeitosa, essa algazarra, não de barulho, que barulho nem se ouve, é uma coisa silenciosa, esse ir e vir quase obsceno. E falam, falam, andam pra lá, andam pra cá. Parece um bando de desocupados! Não, definitivamente não!!! Temos de dar nosso brado, Luís. Temos de mostrar quem somos e quem determina o quê aqui. Ontem mesmo, rapaz, coloquei um papel aqui na mesa e hoje ele não está mais aqui, sumiu, ninguém dá satisfação, tiram e pronto, nem nos perguntam se vamos precisar dele, pra que serve, é importante? não é importante!? Quem eles pensam que são? Quem essa gente invasiva acha que é?

Não, Luís, é agora ou agora. Não agüento mais essa invasão de espaço. Vê esse, esse mesmo que entrou aqui agora! Eu pergunto o que ele quer, o desgraçado não ouve, não nos olha, nada responde, mexe, mexe, senta-se, às vezes até sobre mim, me expulsa da minha própria cadeira, um horror, invasivo, Luís, muito invasivo!! Mas ele não é o único não! Vem outro, invade, vem outra, invade, e riem, riem, riem, falam, falam, discutem, às vezes perdem a paciência por alguma besteira, pelo menos é o que consigo captar. E sempre, sempre nos ignoram, como se não existíssemos!! Absurdo! Parece que eles não têm regra alguma. Respeito, nem pensar. Educação, ah!, isso deve ser coisa de outro mundo! Onde vamos parar, Luís!

Bem, você também não quer falar nada! Só ouve, só ouve, só ouve. Também não te condeno não. O que temos de ouvir aqui o dia todo, ou melhor, de ver, é motivo pra ficarmos calados mesmo. Mas eles vão invadindo, Luís, eles vão ganhando espaço. Veja o que nos resta! Quase nada! Sim, porque minha própria sala já tenho de dividir com esses surdos, cegos e mudos. Eu falo, não respondem, eu cutuco, fingem nada sentir, empurro, mas minha força é atualmente insuficiente e eles não se movem, ou melhor, se movem quando querem apenas. ‘Tá difícil! Ando com ódio, Luís, com perdão da palavra, ódio deles todos. O patrão parece que não sabe mais contratar funcionários. Péssimos! Aliás nem o patrão tenho visto mais!

Esquisito! Quis registrar algumas palavras, liguei o gravador, falei, falei, mas ele está com defeito, aparentemente só chiado! E também não tenho ouvido nada mesmo! Achei que era isso! Mas quando um desses outros o usou, o safado gravou tudo direitinho, sim, direitinho, que eu o vi satisfeito! Não praguejou como eu. . Aliás, só deve ter gravado futilidades, porque ria ouvindo suas besteiras! A caneta me pesa tanto na mão que mal consigo sustê-la. Acho que estou velho, Luís! Mas, diabo, só tenho 63! Se isso já é velhice, sei lá, tem gente aí de muito mais, e ainda andam, gesticulam, querem coisas! Pelo menos é o que sinto! Como pode eu com 63 não ter mais força!!? Cuidado, Luís, olha essa irresponsável abrindo minha porta! Veja: nem nos cumprimentou, a idiota! Finge não nos ver, não escutar. E se esfrega em nós, deslavada! Abre, escancara, põe esse pesinho idiota como ela pra segurar a porta e vai embora. Você mandou abrir a porta? Não! Nem eu! Onde está aquela antiga e boa educação?!

Mas voltando ao imponderável! Você, Luís, tem alguma explicação para tudo isso que está acontecendo? Por que nossa empresa está dividindo espaço? E por que não nos mudamos? Estamos trabalhando ou o quê? Parece que nosso serviço não rende mais, repete-se, parece que está num mesmo dia há muitos dias! O que, Deus, está acontecendo! Vou aos outros setores e lá estão alguns dos nossos antigos colegas, os mais velhos apenas. Os mais novos acho que não agüentaram o tranco e se mandaram, não os tenho visto. Mas cruzo sempre com o André, o Arnaldo, o José, o Juvenal, a Antonieta (hummmm, ela me dava bola, agora não vale mais a pena!), a Maria, a Creuza continua sua faxina e faxina, faxina, faxina o dia todo. Esses encontro sempre por aí, labutando, mas me parecem um pouco diferentes do que eram, não sei se mais tristes, mais alegres ou neutros. Amorfos, com certeza! E você mesmo, Luís, você perdeu aquele brilho, aquele viço, seus olhos não resplandecem mais, parecem amortecidos, cansados. O que está acontecendo com a gente, Luís, nem somos tão velhos assim! Você mesmo ainda é mais novo do que eu!!! Explique, homem, explique o que se passa!

Olha a invasão de novo! Cuidado, moça, cuidado, eu estou aqui! Diabo! E nada cheira, que moça inodora! Insossa também! Abre gavetas, mas o que gosta mesmo é de ficar ao telefone. E de falar cada coisa! Sussura, porque não ouço, mas sei que ela está falando besteiras! Os gestos não mentem! Sei lá, tem algo diferente nesses últimos tempos. Será que envelhecemos, Luís, será que nosso tempo passou? Cuidado, moça, você está sentando no colo do meu amigo! Desavergonhada! Finge que não percebe e se aproveita! Gostou, Luís? Ih! nem você reage mais, rapaz! A moça é bonita, aproveitável, eu, com 63, ainda daria um caldo nela! E você nem ligou, nada fala, sempre calado. Acho que vou conversar com a porta. Ah! como demora a escurecer aqui! Estou cansado e com sono, embora tenha a sensação de que esteja dormindo há muito tempo! Diabo! Ninguém fala comigo! Uns falam, falam, mas não dizem nada e não falam comigo. Aliás, me ignoram totalmente, como se eu realmente não existisse. Vou-me calar mesmo. Pro diabo com todos! É como se eu não precisasse mais de portas, paredes, janelas, mesas, cadeiras, pessoas! Ouço uma música! Música forte! Rápida! Desagradável! Agora outra, melhor, agradável! Não ouço mais ninguém! Todos se calaram, mas mexem os lábios, falando, falando, falando inaudivelmente! Só a música vem clara, forte, agradável agora! Dane-se! Vou dormir! Definitivamente, algo esquisito acontece aqui!

Leo Ricino

Junho de 2004 – releitura: 30-7-10

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 07/12/2010
Código do texto: T2658567