“UMA POMBA em MINHA VIDA” (Parte 3/FIM)

(XI)

- Presta atenção moleque!

Dizia, por meio de um enviesado olhar de reprovação, o Padre...

... na primeira vez em que me excedi nas badaladas do sininho que anunciava, de entretempos, os atos ecumênicos da Missa matutino-dominical, para a qual havia acordado bem cedinho, cumprindo o ritual familiar e onde exercia função de exemplar Coroinha.

Sonolento estava por ter consumido grande parte da noite pensando em como contornar a situação, não havia fotos e nem testemunhas da façanha...

Alguém acreditaria nessa história?

Seria ridículo alegar que o gato comeu o troféu...

A zombaria seria maior.

Tanto “trabalho” perdido, o prejuízo era irreparável.

Não havia como fazer o Teimoso confessar o crime...

Ele era tão dissimulado que havia tratado de se lavar, e tão bem, que nem aparentava ter degustado uma penosa, parecia até mais limpo do que nunca, quando o surpreendi estatelado sobre o sofá da sala, na noite anterior.

Tremendo cara de pau!

Até me esticara o queixo esperando carinho, quando levou um tapa na orelha e saiu de fininho, me olhando de rabo de olho, fingindo-se inocente...

Não tem jeito pra dar, é melhor esquecer essa história...

- Presta atenção moleque!

Repetia, com o mesmo olhar atravessado, o Padre que, em seguida finalizou as recomendações sobre as providências para a Primeira Comunhão, da qual eu participaria numa das semanas seguintes.

(XII)

Chegando em casa, estranhei o latido do Titiu (um vira-latas de muita raça, mais ajuizado e obediente do que a maioria de nós), parecendo acuar e ao mesmo tempo, proteger, algum animal, que se supunha de pequeno porte, pela acentuada vergadura que ele fazia em seu dorso, por cuja linha longitudinal eu tentava visualizar a presa.

Mais perto chegando, reconheci o bornal, que, antes, verde e agora, marrom de terra e barro dos fundos do cercadão do galinheiro, e que saltitantemente se movimentava com dificuldades, aos brados do Titiu.

Revigoradas as esperanças de recuperação do troféu, apressadamente corri e resgatei o bornal, levando-o para o “esconderijo” secretamente instalado no telhado de casa...

Com todo cuidado desamarrei as embiras, segurando o bornal com a mão esquerda, enfiei a direita dentro e tateando segurei por sobre as asas a esperneante pomba e a trouxe para a luz...

Enorme...

Enorme a decepção com o tamanho da pombinha, inha, inha, inha...

Inacreditável...

Não podia ser a mesma, não podia ser “aquela” de ontem, enorme, desafiadora, corajosa e imponente...

Parecia agora tão minúscula, assustada, frágil e impotente.

E ainda tinha enorme hematoma sobre o olho direito, a denunciar que era ela mesma...

A mesma de ontem, mas não a desafiadora...

E sim, a vítima...

E eu (olhei em volta, como não havia mais ninguém), então, o algoz!

Como é que pude, um marmanjo desse tamanho dar uma pedrada na cabecinha dum bichinho tão...

Frágil?

Notei que sua asa esquerda também estava machucada, pela queda ou por obra do Titiu, e decidi colocá-la em recuperação, enquanto decidia se, e como, apresentá-la aos companheiros caçadores.

Desci e a levei para o “cercadinho” do galinheiro, provido de tela fina que impedia a fuga e o acesso dos predadores dos pintainhos; ela tentou voar se debatendo contra a tela, depois se manteve acuada num canto.

Pouco depois retornei para trazer quirela e água e, para minha surpresa, ela devorou grande porção de alimento e de água.

(XIII)

O Titiu chegou alegre para me comunicar, com o balanço agitado e peculiar do rabo, que algum conhecido havia chegado ao portão de casa, para onde me desloquei no afã de amoitar a “presinha”, recebendo um de meus companheiros, que anunciou ter vencido o embate com o outro e que estava pronto para me desafiar.

O Titiu, ágil mensageiro, não compreendendo meus sinais de orelhas e olhares não me seguiu ao portão, permanecendo no galinheiro a cuidar da nova hóspede, deixando, por descuido, escapulir um latido de guardião, prontamente reconhecido por meu companheiro que, solícito, me convidou para conferir o que o “Tomba” (apelido carinhoso que dedicava ao Titiu) estava “aprontando”...

- Linda pombinha!

- Deve ser filhote daquelas “grandonas” que a gente “caça”...

- Caiu de algum ninho aqui por perto?

Balançando a cabeça na vertical, soltei um instintivo SIM, meio indignado com o diminutivo...

Mas, de certo modo, conformado com a relativização da historia que, mal nascida, já se via transportada pela carruagem das conveniências, para o cemitério do esquecimento...

(XIV)

- E aí, VAI almoçar logo para IRMOS pro Colégio?

Era a senha dele, de poucos dígitos, para (facilitar a descoberta) SE convidar para o almoço, que tinha um cheiro de quase pronto, vindo da cozinha de casa.

Nem me lembrava mais do "gran finale" do campeonato que (eu era o organizador e finalista, coincidentemente) se realizaria no ginásio do Colégio que era franqueado ao Grêmio Estudantil, na tarde daquele domingo, no horário exato de “depois do almoço” (na precisão caboclina, de então).

Falando em almoço o cardápio daquele dia seria, macarrão com galinha... batata!

Batata não tinha, mas acertei o resto, porque era domingo e, não seria domingo, se não tivesse galinha com macarronada, verduras, legumes e “laranjada” ou limonada... que comemos e tomamos, rapidamente e, vamos...

Íamos...

- Não!... Não esquece de escovar os dentes! Cobrou minha “ir-mãe” mais velha...

E vamos, agora fomos para o Ginásio.

A torcida, organizadamente desordenada, nos ignorava dedicadamente...

Campeonato? De que mesmo?

Burca? Bolinha de Grude? Eca! Em mim, não.

Quando? Onde?

Me avise, outro dia...

Mas, quando vi meu “adversário” imaginei: Estou perdido!

Não tenho a menor chance, ele é velho, muito mais velho do que eu...

Já devia ter uns 17 anos, no mínimo uns 16, era muito velho!

Além de “mais velho”, era “maior” do que eu...

Só era menor, bem menor, que a própria arrogância...

Prenunciava um “já ganhei” num silencioso olhar contra minhas bolinhas, sobre a mesa.

Sugeri e começamos o jogo com dez bolinhas de cada um, mas como ele era vorazmente mais hábil, exigiu o aumento gradual do numero de bolinhas a cada jogada, no afã de acelerar o resultado, por mim tão temido...

De cem em cem, vi minhas bolinhas mudarem de bolso rapidamente, sobrando números quebrados, nos obrigando à jogadas de 50, de 30, de 20 e de 10 bolinhas...

Perdidas as 509 bolinhas, sobrando apenas UMA e ele, arrogantemente, não aceitou jogar por tão pouco...

Foi quando me lembrei das 10 bolinhas que, no dia anterior, haviam caído do bolso, me obrigando a voltar para recuperá-las...

As localizei no bolso da calça curta, e – temendo o fim inglório de todas elas - separei a mais bonita para guardar como lembrança e juntando as nove com a única que sobrara na mesa, formei uma dezena, para a última cartada...

Pela primeira vez ganhei uma mão... somando 20 bolinhas; tentei convencê-lo para uma jogada de 10, dividindo o risco, o que não foi aceito pelo adversário, que tinha pressa em liquidar o jogo...

Ganhei a segunda não, somando 40 bolinhas e, novamente, tive que aceitar o jogo do tudo ou nada, contra o impaciente e levemente irritado adversário...

Mais irritado, na terceira, quarta, quinta e sexta... somando 80, 100, 200, 400...

Epa!

Era o “adversário”, agora modesto e elogioso, quem pedia menos, por não mais ter tantas bolinhas para “mãos” dobradas... 100, 50, 20, 10, 5, 3 e 1...

Feliz e vitorioso eu saía de bornal lotado com as bolinhas que havia “rapado” no jogo, e mais as nove especiais, já “devolvidas” para o bolso, quando meu “ex-adversário” pediu que lhe desse apenas uma para guardar de lembrança, que ele pegou de dentro do bornal, depois de muito escolher só com o tato e se afastou com ar de contente.

Meu companheiro de caçada chegou nesse momento, relembrando do desafio prometido, e logo começamos as jogadas de 100, de 50, de 30, de 20, de 5, de 3, de 2 e de 1...

Perdi todas as jogadas, todas as bolinhas, não sobrando nenhuma...

Não descontente, mas ex-feliz, já me retirava de bornal vazio quando encontrei também de saída o vice-campeão, meu “ex-adversário”, que tinha acabado de “rapar” alguns incautos, a partir de uma só “birula”, aquela “da sorte”, que eu lhe devolvera de lambuja.

Contei-lhe minha desdita e ele, sensibilizado, sugeriu me emprestar a bolinha da sorte, sob promessa de lhe devolver em seguida.

Dispensei a oferta, estava satisfeito com minhas 10 especiais, mas, de curioso, pedi para examinar a tal “da sorte”...

Apesar de um pouco lascada, tornando-se refratária de luz e sensível ao tato, eu a reconheci...

Ele disse tê-la encontrado na manhã daquele domingo...

Estava suja de sangue, e com o meu gato, o Teimoso, que com ela brincava dentro do “cesto/ninho” da namorada, a gata Siamesa da irmã dele...

Resistiu a todos aos pedidos que fiz – nos anos que se seguiram - mas sem revelar o por quê de tanto interesse e apego àquela simples bolinha de gude...

(XV)

Encrustradas como bases das 10 velas de um imponente barco Viking, integram a decoração de meu escritório e até hoje as mantenho sob vigilância.

Menos aquela 11ª, a “da sorte”... a última vez que a vi ela estava sobre a mesa de trabalho, da sala de um grande empresário “apaulistanado”, em que se tornou meu “ex-adversário” de jogo de bolinha de gude...

Meus amigos inseparáveis, não os vejo, há anos.

Um, além de filhos, faz “não-sei-o-que” no Egito, onde mora.

O outro, que me derrotou na pós-gran finale, foi Delegado da Policia Federal (“prendedor de caçadores de passarinhos”) e solteirão “convicto” por muitos anos...

um dia, de bobeira, acabou sendo predado por uma ingênua gringa com quem se casou, e em férias foi “treinar” nos casinos de Las Vegas, de onde nunca mais retornou e me mandava cartões postais de paisagens nevadas, nos natais de alguns anos bissextos...

Voltando para casa, abri a porta do cercadinho...

com dois pulinhos ela saiu para fora, parou, e ressabiada caminhou um pouco e lentamente...

(como quem incrédulo pela inesperada liberdade, segue pisando manso temendo ser atraiçoado pelas costas)

pulou para um galho baixo da amoreira, testou as asas, abrindo e fechando-as...

em seguida, voou para o cajueiro e dali, ainda me olhou desconfiada...

depois, para o topo de um “Pé de maminha-cadela”...

esticou as asas...

respirou fundo e...

mergulhou...

para a liberdade...

do futuro... ...do pretérito. FIM

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 06/03/2010
Reeditado em 19/06/2010
Código do texto: T2123623
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