A Visita do Poeta Morto

Tinha acabado de acender meu último cigarro. Observava a fumaça desenhar um rosto feminino sob a luz baixa do quarto. Gotas pesadas de chuva açoitavam a janela e seus ecos enchiam meus ouvidos... Contrariado, lancei as cinzas em um papel borrado, um soneto incompleto que jazia sobre a escrivaninha. Então no derradeiro trago... um suspiro... uma dor, por um momento pude sentir os versos brotando de meus dedos e os riscos da caneta sobre o papel. Terminado o parto, deixei meu legado, sobre a mesa. Ainda insatisfeito, apaguei a vela e me lancei sobre a cama. Tomei mais um gole de vinho tentando inutilmente aplacar minha inquietude. O leito parecia afundar ante o peso da minha ânsia. Voltei à escrivaninha, papéis amarelados, livros abertos... uma garrafa de vinho. Aquilo tudo me lembrava o quarto do malfadado Werther em sua derradeira noite. Ri-me disto, um riso amargo e frio. Sentei-me novamente, ofegante, meu coração disparava. Uma escuridão inebriante enchia-me os pulmões. Sentia uma presença estranha no quarto. Repousei a minha cabeça sobre o travesseiro e quase adormecendo, imaginei as ruas vazias, as luminárias lúgubres e suas chamas vacilantes, pessoas sob a iluminação vaga fugindo da chuva. Podia até ouvir os seus passos... E então alguém bateu à porta. Olhei para o velho relógio holandês que fora de meu avô... Eram quase duas horas. Ergui-me a contragosto e acendi algumas velas. Ao abrir a porta, um estranho falou.

- Boa noite, companheiro.

- Boa noite, respondi, sem saber por que dizia aquilo.

Ele respirava com certa dificuldade, olhou-me fundo nos olhos e falou como se já me conhecesse.

- O que tens? Pareces bastante angustiado.

- Acabaram-se o cigarro e o vinho, o céu não tem estrelas e chove. Falta-me inspiração para um conto. Compus um soneto apenas. Murmurei amargurado.

O estranho me lembrava alguém. Não sabia de onde, mas já o tinha visto.

Era um jovem rapaz, parecendo ter pouco mais de vinte anos, nem alto nem baixo, cabelos negros e olhos castanhos. Era magro e tinha profundas olheiras. Parecia bastante adoentado. E então recuei para permitir sua entrada.

- Entre, por favor, e sente-se.

O estranho entrou sentou-se à escrivaninha.

Estava ofegante... Aparentava um cansaço de viver incomum para pessoas da sua idade.

Ele inspirou profundamente o ar pesado do meu quarto. Acendeu um cigarro e falou.

- Tens bom gosto meu amigo. Disse, apontando para os livros sobre a mesa.

Ali próximos, Byron, Álvares de Azevedo, Goethe, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza e Dickens estavam representados.

- Sorvi tudo que pude das páginas de seus livros. Suas frustrações, seus desejos... Mas é inútil. Lamentei enquanto me aproximava do jovem.

Mostra-me teu soneto. Já faz algum tempo que não leio nada além de meus rascunhos... Pediu-me o estranho.

Andei até a escrivaninha, retirei o soneto de dentro de um livro e o entreguei... afastei-me um pouco e o deixei ler.

Novamente. Pego a caneta e tento

é Inútil! Rasgo o papel praguejando

Dez vezes me peguei tentando

e nem um verso obtive a contento

Varias horas passei esperando

por aquele singularíssimo momento

que em verso a partir de um pensamento

Toda angustia vai se materializando.

Todo tempo, envolta em trevas

a inspiração, de mim, escapou ligeira

frustrando-me as tentativas

de um tremendo esforço, a noite inteira

onde tentei organizar idéias soltas.

Mas por fim, lancei todas à lixeira.

Andei pelo quarto, ansioso, talvez, à espera da aprovação do estranho...

Ele ergueu-se sem se pronunciar e tirou uma garrafa do bolso. Encheu o meu copo e falou levando a garrafa aos lábios

- Bebamos. Ao teu soneto!

Bebi avidamente o que ele despejara em minha taça. Era um vinho quente e doce. Subiu-me à cabeça rapidamente. Senti as palavras se organizando em minha mente e tudo então me pareceu mais claro.

Então vi a imagem do estranho se desvanecendo em minha frente. Lentamente a matéria que o compunha foi se tornando um tênue vapor etéreo que tomou o quarto inteiro. Ofegante, inspirei toda a fumaça... Por fim pude ouvir sua voz em minha cabeça...

- Devo ir agora, meu rapaz. Já tens tudo o que precisas para teu conto. Desejo-te boa sorte.

De repente, a vela apagou-se.

Acordei perturbado. O relógio anunciava quatro horas da manhã. Levantei-me e fui até a escrivaninha. Acendi as velas... Meu copo estava vazio, os livros no mesmo lugar. Abri um deles. Noite na Taverna... Reconheci imediatamente o estranho na velha ilustração do autor do livro.

Sentei e pus-me a escrever.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 05/06/2009
Reeditado em 07/06/2009
Código do texto: T1634334
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