A Sinfonia
Ele se sentou sozinho. Seus dedos tocaram as teclas geladas de um enorme piano de cauda, branco e lustroso. Deu a primeira nota. O som invadiu seus ouvidos e inundou sua alma. O eco fantástico ecoou pelo grande salão vazio e escuro. Deu a segunda nota, agora dois sons dominavam o ar. Suas mãos pálidas deslizaram por entre as teclas e dançaram sobre as palhetas pretas e brancas. Os pelos em sua nuca e braços se arrepiaram e seus olhos se encheram de água; era a sensação mais divina do mundo. A música cantou soturna e melancólica. E de repente, outro som se uniu a essa canção. Um violino chorou com o piano solitário, numa mágica combinação. Outro som. E uma harpa agora se unia aos demais. Ele, no entanto, não parava de tocar, cada vez mais. Mantendo os olhos fechados, uma lágrima escorrendo por sua face branca de morte. Vieram flautas e mais sons. Um coral ao fundo começava a cantar. A canção era de dominar o espírito e assustava na mesma medida que emocionava. Ele só continuava a tocar. As velas no grande lustre se acenderam e uma vaga claridade preencheu o local. Mas nada disso o fazia parar, ele continuava seguindo para o além. Foi quando ouviu. Aquela voz. Era o medo, o amor, a loucura, o inferno e o paraíso. Soando como uma ópera. Era a voz dela. Seus gritos alternados entre a melancolia e a paz. Ele abriu os olhos. Não estava sozinho. Ao seu redor havia vários outros, tocando seus instrumentos. Todos vestidos com longas capas negras. Logo atrás o coral. Todos de capuz, macabros, ocultos e surreais. Mas o que ele queria era ela, era aquela voz. Então parou de tocar. Seu rosto virou para observar. Mas assim como ele, todos também pararam e o silêncio foi de arrepiar. Ainda estavam lá. O encaravam sem se mexer. Ele ousou se levantar. Sem mais nem menos, sangue quente escorreu por entre seus dedos. As teclas, outrora brancas, agora jaziam púrpuras, e o líquido da vida continuava a jorrar. Escorrendo completamente, até pingar sobre seu terno cinza. Ele ouviu passos e percebeu que no fundo do salão, outros acabavam de chegar. Esses com capas vermelhas, como o sangue que amornava e lavava suas mãos. Então, eles também fizeram música ecoar. Mas a música não era doce, tampouco melodiosa. Era sofrimento e agonia - um inferno musical.
"Parem, por favor, parem, me deixem em paz." Ele tampou os ouvidos com força, mas não havia modo de fazê-los parar. O ruído incessante de uma bateria, riffs de guitarra e tambores faziam suas orelhas sangrar. E ele entendeu que a única forma de acabar com aquilo era encobrir o som, com sua orquestra surreal. Levou as mãos de volta às teclas sangrentas, novamente começando a tocar. O coral negro não demorou a acompanhar. A doce melodia voltava a reinar. Mas era baixa, muito baixa, comparada à loucura que vinha lá de trás, dos homens de vermelho. Ele tocou enlouquecido, como numa competição, os sons agradáveis e os pesados disputaram o ar. Mas nenhum ultrapassava o outro. Juntos, em perfeita sinfonia, eram a orquestra da morte. Na companhia dos demônios, ele tocou até não mais agüentar. Por fim, se levantou enlouquecido, mas a música não ia parar de tocar. Agora o piano tocava sozinho e ele parecia não ligar. Deu a volta no instrumento e segurou a enorme tampa aberta. Seus olhos se fixaram no interior escuro. Algo brilhava, algo cantava... Com um longo vestido branco, manchado de vermelho, ela estava lá. Numa poça de sangue. Mais pálida do que ele. O pescoço com um corte profundo, de onde a morte continuava a jorrar. Mas ainda assim ela cantava e sua voz era linda como nenhuma outra. Enfim ele a achara. A mulher de sua vida. A voz angelical.
Ele fechou a grande tampa com um baque e toda a sinfonia parou de tocar. Um a um os músicos caíram estáticos no chão. Ele caminhou por entre os cadáveres, silencioso, as mãos pingando por onde passava. Estavam todos mortos, todos apodreciam quando sua música não vinha lhes ressuscitar. Com um sorriso no rosto, ele deixou a sala escura e as velas tornaram a se apagar. Na sombra da escuridão, os mortos, como violinos, começavam a chorar.