O sonho não acabou
-“Passarinhos não fazem ninho na ponta do fuzil”, disse Zé Carlos.
-“Viva o Brasil varonil”, respondeu o homem.
-“O envelope está dentro deste livro, comandante”, afirmou Zé Carlos.
-“Muito bem, Custódio. Você deve voltar ao Rio hoje e tome muito cuidado”, ordenou o outro.
O homem não disse mais nada. Pegou o livro das mãos de Zé Carlos, codinome Custódio, enfiou no enorme bolso de seu paletó e sumiu na multidão da Rua Direita. Finalmente Custódio, participara de uma grande missão e conhecera pessoalmente o famoso comandante Oliveira, líder em São Paulo da Liga Revolucionária 21 de Abril, movimento clandestino que lutava contra o governo militar que governava o Brasil.
Conforme lhe disseram, o líder paulista era um homem baixo, mas forte, atarracado, ligeiramente moreno e tinha uma cicatriz ao lado do lábio. Apesar do cachecol no pescoço e do gorro na cabeça, Zé Carlos viu o sinal na boca do comandante. A cicatriz era lembrança dos porões da ditadura brasileira, onde Oliveira dizia ter sido torturado.
Custódio, como era conhecido na organização, onde ninguém era chamado pelo nome verdadeiro, estudava economia numa universidade do Rio de Janeiro, quando abandonou os livros, em 1969, para entrar na luta armada. Deixou para trás família e namorada. Na 21 de Abril, dizia-se que saudade dos pais e de namoradas era sentimento pequeno burguês que não cabia no coração do verdadeiro revolucionário. Mesmo assim, de vez em quando ligava para os pais, às escondidas dos demais.
Ele estava em São Paulo fazia dois dias, num quarto de pensão da Liberdade, naquele frio mês de julho de 1970 à espera do contato com o comandante. Sua missão, entregar um envelope pardo contendo mensagem secreta e lacrada a Oliveira. Zé Carlos não sabia o que o envelope continha.
Assim que voltou à pensão, Custódio começou a arrumar suas coisas para retornar ao Rio. Tomou um banho quente de quase meia hora, o que lhe valeu uma bronca da dona da pensão. Abriu sua bolsa de couro cru, de uso muito comum entre os jovens na era dos hippies, e colocou na cama fotos de seus ídolos extraídas das páginas de jornais e revistas. Guardava aquele material com carinho especial.
Ficou alguns minutos contemplando a altivez de Che Guevara, a sobriedade de Carlos Marighella, o semblante enigmático do capitão Carlos Lamarca, o sorriso juvenil de Chico Buarque, Geraldo Vandré e seu violão, Bob Dylan e sua gaita de pescoço, John Lennon e seus óculos de aro redondo e uma foto de verdade de Ana Lúcia, a namorada que conhecera numa reunião clandestina da União Nacional dos Estudantes e que não via havia vários meses. “Ficar longe dela é como ser torturado nos porões da ditadura”, comparava.
Alguns de seus ídolos estavam sumidos, outros mortos. Dos grandes Che e Marighella, só restavam as fotos no papel. Seus corpos já tinhas sido destruídos pelas balas bolivianas e brasileiras e pelos micróbios no fundo da terra, onde jaziam, em algum lugar. Lamarca, Chico e Vandré, onde estariam? Seus nomes eram proibidos nos jornais e mencionados somente à sorrelfa.
Guardou novamente as fotos na bolsa e sentiu a lufada de vento frio entrar através do desvão da janela. Travou a tramela da janela e deitou-se para se esquentar um pouco e dormiu. Sonhou com seus ídolos, Ana Lúcia, Brasil tricampeão em Guadalajara, no México, Jairzinho correndo atrás da bola como fazia no seu Botafogo e a voz do comandante Oliveira a dizer: “O futebol é o ópio do povo”.
Acordou tarde. Guardou rapidamente suas coisas e rumou para a rodoviária. Ficou sabendo que, devido a um acidente na via Dutra, os ônibus estavam atrasados e o próximo só iria para o Rio no dia seguinte depois das 10 horas da manhã, prazo estimado para a liberação da rodovia. Zé Carlos teve de ficar mais uma noite em São Paulo num hotelzinho gélido da Rua Mauá.
Mas sentia-se feliz e importante com o cumprimento da missão. Estava colaborando para a grande luta que iria transformar o País. De suas mãos e da de seus companheiros sairia o alicate que iria cortar os grilhões que prendiam o povo brasileiro.
Do sangue derramado, surgiria uma nova nação, um novo homem, um sonho enfim realizado. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, como cantava Vandré. “A vanguarda faz a luta”, clamava Marighella, antes de ser tombado na esquina da avenida Paulista, quase um ano antes.
No dia seguinte, na rodoviária, ligou para sua casa, mas ninguém atendeu. Tentou a organização e uma voz desconhecida lhe atendeu. Falou a senha, no entanto a voz do outro lado não respondeu o combinado e Zé Carlos desligou o aparelho, com medo. Então tomou o ônibus preocupado e ao mesmo tempo feliz por deixar São Paulo e seu frio, insano para um carioca de Botafogo.
Assim que chegou na rodoviária carioca, conseguiu falar com sua mãe ao telefone. Desesperada, a mãe lhe disse que a polícia havia invadido sua casa à procura dele e ela não sabia o que fazer. Sua mãe conhecia suas atividades políticas, mas não seu paradeiro. Ligou para a organização e novamente uma voz estranha atendeu e ele desligou rapidamente, sem mencionar a senha.
Nervoso, fumando como chaminé, comprou quatro jornais. Em apenas um deles, encontrou a notícia, pequena, num canto de página. O máximo que a censura da época permitiu ao jornal. A notícia informava que a 21 de Abril fora finalmente desbaratada. As células de atuação carioca e paulista foram invadidas e seus membros, presos. Mais de dez pessoas, até o momento, dizia o pequeno texto.
Zé Carlos viveu meses como clandestino, no Rio, em Campos, em Juiz de Fora e em Porto Alegre. Pela fronteira gaúcha, chegou ao Uruguai e, algum tempo depois, Santiago do Chile. Morou também em Cuba e na Bélgica. Voltou ao Brasil em 1980, com a Lei da Anistia.
No Brasil, tentou encontrar ex-militantes da 21 de Abril e não conseguiu. A organização, uma das menores da época, não tinha deixado vestígios. Quanto aos antigos colegas, não sabia o nome verdadeiro de nenhum, pois eles se chamavam por codinomes. Muitos deviam estar mortos ou desaparecidos, pensou.
Um ano depois, quando se dirigia ao banco, onde trabalhava, perto da Cinelândia, viu uma revista na banca com uma reportagem sobre a 21 de Abril. A imprensa brasileira, em tempos de abertura política e fim da censura, estava ávida por notícias sobre os anos de chumbo da ditadura.
Com o coração saltando, sentou-se num banco da grande praça e leu a reportagem. “A 21 de abril foi desbaratada por um agente da polícia do exército de codinome Oliveira, infiltrado na organização, onde chegou a ser o líder, em São Paulo. Oliveira contou com a ajuda de outro agente, chamado Custódio, que lhe entregou uma relação com o endereço da organização em São Paulo e Rio e os nomes dos militantes”, dizia o início da matéria.
Mais para frente, a reportagem dizia que de Oliveira, desaparecido havia anos, só restava uma foto antiga. “De Custódio, nenhuma pista”, finalizava o texto. Zé Carlos olhou a foto de Oliveira e viu o rosto de um homem moreno com cicatriz no canto da boca.
Nervoso, foi para casa e até esqueceu-se do trabalho. Tinha vivido uma ilusão. Oliveira era um traidor e até ele mesmo, sem saber o porquê, era mencionado na reportagem como colaborador daquela trama pérfida, que culminou na prisão e morte de seus amigos. Colocou um disco de Bob Dylan na vitrola e chorou o fim do sonho de sua vida. Lutou tanto, arriscou sua vida, perdeu parte de sua mocidade em prol de uma causa e agora uma reportagem dizia que ele fora um dos traidores. Pensou em ligar para a redação da revista e exigir retratação. “Eu sou Custódio. Jamais traí meus amigos. O único pulha nesta história é Oliveira que nos enganou a todos.”
Mas não ligou. De nada resolveria. Tudo acabou, mesmo. Continuou ouvindo Bob Dylan: “The answer, my friend, is blowin' in the wind”.
Sua filha pequena aproximou-se e perguntou o que estava acontecendo. Zé Carlos fitou o fundo dos olhos da menina e viu que ainda existia um novo porvir.