O homem duplo
Ribelésio acordou com o sol queimando seus olhos e levou um susto. Não sabia porque, mas estava deitado num banco de praça. Na noite anterior, tinha dormido na cama de sua casa, ao lado da esposa, e agora acordava num banco de praça. Levantou-se, sentou no banco e ficou a imaginar o fato insólito que estava a suceder com ele.
Assim que passou alguém perto do banco, perguntou sobre o local e soube que era uma cidade a mais de trezentos quilômetros de sua casa. Encontrava-se tão longe que até as pessoas falavam e se vestiam de modo diferente.
Caminhou a esmo pela rua até descobrir um telefone público e ligou para casa. Outro espanto. O homem que o atendeu perguntou se ele estava brincando ao dizer que era o Ribelésio. “É claro que sou e você, quem é?” O outro disse que ia desligar o telefone porque achava que era trote e disse que Ribelésio era ele. “O que?”, gritou do telefone público. O outro lado respondeu: “É isso mesmo, eu sou o Ribelésio, moro nesta casa há quinze anos”, e ameaçou desligar o aparelho. “Não, não desligue”, clamou o Ribelésio da rua.
As pessoas na rua paravam para ver aquele homem, de pijama, falando ao telefone. Ribelésio contou detalhes de sua vida particular e profissional ao outro. Este, surpreso, não entendia como aquela voz, parecida com a sua, a quilômetros de distância, falava com desenvoltura sobre todos os detalhes de sua vida como se fosse ele mesmo, dividido em dois. “Ainda acho que é um trote”, e desligou o aparelho, deixando-o fora do gancho.
O Ribelésio da rua tentou seu celular. Mas a ligação caiu na caixa postal. Nervoso, pensando que outro homem tinha assumido seu lugar em sua casa, olhou o relógio e viu que eram pouco mais de sete horas da manhã. O relógio? Sentiu um estalo em sua cabeça. Além do pijama, era a única coisa que provava que ele era ele. Ainda bem que tinha costume de dormir com o relógio de pulso.
Começou a andar novamente pela rua, despertando a atenção dos poucos transeuntes da pacata cidade. Pensou em sua esposa Janelídia. O que teria acontecido com ela? Será que o homem que atendeu o telefone era um ladrão que havia invadido sua casa e feito algum mal a sua mulher e a seus dois filhos? Voltou ao telefone público e ligou outra vez.
Janelídia o atendeu. “Oi querido, já chegou ao trabalho?” Ele se identificou e tentou contar o que estava acontecendo. Ela não entendeu nada. “Riba, você saiu de casa faz vinte minutos, que história é essa de acordar na praça, cidade longe, ladrão em casa...”
Ele tentou mais uma vez e então ela respondeu. “Já sei. Você é aquele maluco que ligou pra casa agora há pouco dizendo ser o Riba e que sabia de tudo sobre ele e eu. O Riba me contou de você e pediu para eu desligar o telefone porque é um trote.” E desligou mesmo.
Ribelésio tentou ligar novamente e o telefone deu sinal de ocupado. Janelídia tinha deixado fora do gancho. Sem perder a esperança, tentou o seu celular. Do outro lado, Ribelésio no trabalho atendeu. “É você de novo? Pare de me atormentar com este trote. Que foi que eu fiz pra você ficar me torrando a paciência. O que você quer?.” O outro emendou. “Como é que você tem a coragem de perguntar o que fez? Você roubou minha mulher, meus filhos e agora vem com esta história de quem não sabe o que fez?”
Do seu trabalho, Riba disse que ia desligar e se ele tentasse novamente iria chamar a polícia. “Boa idéia. Chame mesmo. Assim a gente põe a limpo esta história”, gritou o outro Ribelésio.
Pôs o telefone público no gancho, enxugou a testa suada e olhou ao redor na tentativa de encontrar uma solução para aquela loucura. Alguns minutos depois, um policial, que por ali passava, perguntou se ele era novo na cidade. Ribelésio contou o ocorrido e deixou o guarda atordoado com a história. Este sugeriu levá-lo à delegacia da cidade. Ribelésio gostou da idéia, pois já tinha pensado nisto antes.
O delegado encostou de lado a revista de palavras cruzadas e atendeu os dois. Assim como o guarda, o delegado também não entendeu o que sucedera com aquele cidadão andando pela rua vestido de pijama. Anotou os números de telefone que Ribelésio lhe deu e ordenou ao policial que o levasse ao xadrez. Ribelésio esperneou, xingou, amaldiçoou, mas foi levado à cadeia. Alíás, era o único preso no local.
Preocupado, o delegado ligou para dois sanatórios de doentes mentais da região perguntando se algum louco havia escapado nas últimas horas. Ficou sabendo que não. Resolveu então ligar para os telefones. Falou com Janelídia e com Riba, no escritório. Ficou sabendo que um maluco estava ligando para eles insistindo em dizer que era Ribelésio. “Agora o homem está preso, só não sei como enquadrá-lo na lei”, acrescentou o delegado.
Encaminhou-se à cela e encontrou Ribelésio chorando. “Meu amigo, quem é você afinal? De onde veio? O que quer?”, questionou o homem da lei. Ainda lacrimoso, o preso insistiu em sua história e disse que estava falando a verdade. Ele era Ribelésio, não aquele impostor do outro lado do telefone. “Trabalho naquela empresa há vinte e dois anos. Comecei como almoxarife e hoje sou engenheiro de produção. Pergunte ao meu chefe, o Anselmides, ele me conhece bem. Aquele cara que está com o meu celular, trabalhando no meu lugar, é um impostor. Eu sou o verdadeiro Riba, como sou chamado na fábrica.”
O delegado ligou para Anselmides e este disse que não entendia o que estava acontecendo. Neste instante, o Riba trabalhava na companhia normalmente, como todos os dias. “Não sei o que este sujeito aí está querendo. Vamos fazer um teste. Pergunte pra ele qual é a senha para entrar no sistema de produção do K2, só eu, o Riba e o presidente da empresa conhecemos este segredo.”
O delegado deu um pedaço de papel ao preso e este escreveu a senha bastante comprida, com números, símbolos e letras. Assim que o delegado informou a senha pelo telefone, Anselmides gritou. “Meu Deus. Como é que este cara sabe. Ninguém é capaz de adivinhar uma senha tão complicada como essa. Este sujeito é o Riba, mesmo. Deixe-me falar com ele, delegado”, pediu o chefe da fábrica.
Enquanto os dois conversavam, o delegado tentava acabar com as palavras cruzadas, com as pernas em cima da mesa, mas não conseguia se concentrar no entretenimento. Seus ouvidos estavam interessados na conversa que se desenvolvia ao seu lado. Ribelésio contou a mesma história de dormir em casa e acordar no banco da praça, ainda de pijama. Alguns minutos depois, desligou o telefone e olhou alegre para o delegado.
“O que seu chefe acha que está acontecendo?”, questionou o homem da lei. “Ele também diz que minha história é muito estranha e difícil de acreditar. Mas pelo menos deu-me esperança de que vai conversar com o impostor e descobrir porque está ocupando meu lugar. Falei pra ele do relógio que está comigo. Meu chefe conhece bem este relógio pois foi ele quem me deu no dia da minha formatura. Enquanto isto vou voltar à cela e esperar pela ligação de volta.”, disse Ribelésio.
Quase meia hora depois, o telefone tilintou. Anselmides disse a Ribelésio que estava muito confuso. O Riba que estava na fábrica não tinha relógio no pulso e disse que não sabia como tinha perdido. Fora dormir com o objeto no pulso, como fazia todas as noites, e acordara sem. Tirante este fato estranho, este Riba era o mesmo Riba de sempre.
“Sendo assim meu caro, estamos num impasse. Temos dois Ribas. Você, aí de não sei onde, e este que agora está aqui na fábrica, ao meu lado. Só tem um jeito de resolver o dilema. Venha para cá imediatamente, se o delegado deixar. Se não tiver dinheiro para pegar o avião, envio uma ordem de pagamento para qualquer banco aí da cidade”, disse Anselmides.
O delegado não só deixou que ele saísse como também o acompanhou ao banco. Afinal, o coitado não tinha documentos e precisava de uma autorização para sacar o dinheiro. “Durmo com relógio no pulso, mas não com documentos no bolso do pijama”, disse Ribelésio.
De posse do dinheiro, disse ao delegado que iria correndo ao aeroporto mais próximo pegar um avião. “Quero chegar logo e resolver este assunto de uma vez, antes que enlouqueça”, disse Ribelésio.
Algumas horas depois, chegou a sua cidade e pegou um táxi direto para o trabalho. Já era tarde, faltava pouco para acabar o expediente. Na portaria da fabrica onde trabalhava, uma multidão o aguardava. À frente, estavam sua esposa Janelídia, seus dois filhos, Anselmides e, claro, Ribelésio, que trajava o jaleco azul da companhia, com camisa e gravata por dentro, e o capacete amarelo de engenheiro de produção.
Desceu do táxi e olhou para as pessoas, a mais ou menos vinte metros dele e se encaminhou para eles. O Ribelésio de gravata fez o mesmo. Todos ficaram parados, olhando aqueles dois homens iguais, apenas com roupas diferente, irem ao encontro um do outro. Quando ficaram próximos, se cumprimentaram. Assim que as mãos se tocaram, uma fumaça escura se formou em torno deles, tapando-os dos olhares da multidão.
Alguns segundos depois, a fumaça se dissipou e surgiu um só Ribelésio. vistia o jaleco azul por cima do pijama e carregava o capacete debaixo do braço. Anselmides foi ao seu encontro.
“O que minha família e os funcionários estão fazendo aqui na frente da fábrica?”, perguntou. “Ora Riba, não vá me dizer que você não sabe o que aconteceu?” replicou Anselmides. Boquiaberto, Ribelésio respondeu: “Eu? Claro que não. Estou chegando agora”.