O dia de chuva não-nascida
Naqueles dias a cidade de São Desidério parecia esquecida pelo mundo. Todos estavam apreensivos, esperando uma chuva anunciada pelo céu negro, mas que se recusava a cair. Um evento interessante e irritante: as nuvens cobriam a cidade, mas a chuva a ignorava. Nenhuma gota de água em nenhuma rua. Os habitantes de São Desidério se trancavam em casa para se protegerem de uma chuva não-nascida. A cidade estava deserta.
Trovões apregoavam a existência de relâmpagos próximos desde as oitos da manhã. As pessoas desligavam todo tipo de aparelho elétrico. Sem os aparatos tecnológicos que as afastavam da realidade e uns dos outros, a espera se tornava mais intensa. Mulheres e crianças aninhavam-se nas camas. Pais que há muito perderam o costumee de conversar com seus filhos viam-se na sala, frente a frente com suas crias, como num julgamento medieval. As crianças, antes animadas pela promessa de uma diversão contagiante na lama, agora tremiam de medo ao escutarem os trovões, encolhidas nas janelas. Um estado de sítio natural, mostrando que nenhuma guerra, nenhuma ditadura tem mais poder do que os desejos da Natureza.
A sensação de vazio e de espera fez com que todos levantassem as suas cabeças e abrissem os seus olhos.
Depois de anos tentando esquecer a traição e evitando falar sobre isso, Camila observava seu marido, sentado na poltrona no centro da sala. Não falava mais com sua mãe, mas ainda vivia com ele, pois não tinha como se manter. Agora estava diminuída em um braço, pois o outro se foi no dia em que ela descobriu a traição. E o único braço que sobreviveu à mão maldita de seu marido estava na cozinha, fazendo a comida para ele. Anos de sua vida desperdiçados para que ele estivesse ali. No centro da sala.
Gustavo, com apenas sete anos, já tinha a ciência da raiva. Mas era esperto e sabia que não podia enfrentar a irmã, bem mais velha que ele. Uma menina idiota que o espancava para que não contasse aos seus pais as coisas nojentas que ela fazia com ele. Só que agora ela estava ali na janela, hipnotizada, olhando para o céu. Agora ela estava vulnerável.
Mariana sentia sono, mas o ar estava tão pesado que não sonseguia dormir. Aquela coisa dentro dela pesava também, mexia de um jeito estranho e enjoativo. Ela queria que nada tivesse acontecido. Ela queria que aquele homem na sala nunca tivesse nascido. Nem ele nem a mãe dela, que não acreditou quando ela falou as coisas que o tio a obrigava fazer. Ela não era vagabunda, tampouco estava inventando mentiras. Não merecia aquela surra. E eles estavam ali, na sala, conversando, como se a vida dela não tivesse virado um inferno. Como se não fosse culpa deles.
Marcelo olhava pela janela. E viu várias outras pessoas olhando através de suas janelas para uma cidade vazia, com seus olhos vazios. Mas todas elas tinham alguém do lado. Ele estava na casa mais linda da rua. Sozinha.
São Desidério fez suas almas divagarem nas ilusões mais sórdidas e evitadas de suas vidas. Cada detalhe sujo do mais inocente, cada detalhe esquecido dos mais cínicos foram colocados à mostra. Porque é muito mais fácil ignorar, engolir, deixar passar. Muitas vezes o peso da culpa é melhor do que enfrentar o rosto teso da verdade. A cidade sabia disso; segredou com o Universo. Decidiram brincar com aqueles fantoches que imaginavam possuir livre-arbítrio. E assim o fizeram.
Ninguém comentou as coisas estranhas que aconteceram naquele dia. Os mortos enterrados não tiveram suas tragédias anunciadas pelos jornais. Ninguém ousou dar seus pêsames para os outros; preferiram guardá-los para si mesmos. As manchas vermelhas e os restos de carne foram limpos e desgrudados das paredes com uma condescendência estóica. Nenhuma lágrima rolou em rosto algum.
Esse dia também foi esquecido e enterrado com seus mortos. Mas alguém em algum lugar, no infinito do céu ou nas profundezas da terra, ria da fraqueza humana. E ria ainda mais porque sabia que, mesmo que tentassem esquecer esse dia, ele retornaria, assim como seus medos e culpas vis retornaram.
Mas isso ficaria para um outro dia de chuva não-nascida.